Antes de se instalar nas residências assistidas da Misericórdia de Vila Nova de Gaia, Alice Jorge atravessou o Atlântico para estudar piano no Porto, conheceu vários países e continentes do mundo e deslumbrou-se com a vida cultural do seu tempo. A música acompanha-a desde que nasceu e não mais a abandonou, mesmo agora que os olhos atraiçoam a leitura das partituras.
Alice Jorge nasceu em Manaus, no Brasil, em 1927, no seio de uma família afortunada, que valorizou desde cedo a educação das duas filhas. Em pequenas frequentaram os melhores colégios da cidade, sem nunca descurar a formação musical no Conservatório de Manaus, onde estudaram piano (Alice) e violino (irmã).
Em casa, as reuniões familiares eram frequentes e muito participadas, pontuadas amiúde por momentos musicais. O pai tocava flauta transversal nos tempos livres e o avô materno dominava a tuba tenor (ou bombardino). “Fui criada naquele ambiente musical”, recorda.
Beneficiando da biodiversidade local, a casa de piso térreo era cercada por um jardim luxuriante, povoado de aves exóticas. Desses tempos guarda memórias felizes, ligadas sobretudo às festividades do Natal, Páscoa e aniversários, onde a casa fervilhava com dezenas de pessoas, “enfeites a condizer com a data” e iguarias do país de origem. O festim era coroado de canções acompanhadas ao piano, pela primogénita da família, sempre sob o olhar atento do avô bombardino, que se sentava invariavelmente junto ao piano.
A morte precoce da mãe, em 1944, abalou a harmonia familiar, mas não esmoreceu o “ambiente saudável e caseiro” que se vivia dentro de portas. Uns anos mais tarde, as irmãs preparavam a ida para Portugal para prosseguir estudos no Conservatório de Música do Porto. “O meu pai tencionava liquidar os negócios em Manaus e terminar os seus dias em Portugal e mandou as filhas para um lar de freiras, na rua do Breiner”. O regresso definitivo aconteceria em 1957.
Chegada ao Porto, Alice Jorge não mais quis abandonar a cidade que a acolheu como compatriota, sempre acompanhada pelo piano alemão, mandado comprar pelo pai, em 1952. Aqui se formou, casou e construiu o seu percurso profissional e afetivo, disseminando durante mais de 40 anos a paixão e a técnica musical por inúmeras gerações. “Dei aulas em colégios particulares e públicos, onde trabalhei até aos 70 anos”.
Aos 32, casou na Igreja de São Martinho de Cedofeita com a figura garbosa que lhe sorri no retrato de casamento e instalou-se no primeiro prédio de andares da rua Júlio Dinis, no Porto. Conhecera o futuro marido num grupo de tertúlia que se reunia em cafés da cidade. “Também ele um grande entusiasta da música e de espetáculos, sobretudo óperas”, detalha a nonagenária. Recorda, entre risos, a semana de férias passada em Vigo com o propósito de assistir a um festival de ópera. Após uns dias, Alice desabafa “Ó Jorge, isto é ópera a mais”. Mas “ele nunca se cansava, era a paixão dele”. E todos os pretextos eram bons para viajarem juntos.
O espírito curioso e aventureiro determinou que, mesmo após enviuvar, a portuense nascida em Manaus continuasse a desbravar fronteiras por este mundo fora. Chile, Argentina, Holanda, Bélgica, Dinamarca foram alguns dos destinos que integraram o roteiro de Alice e um grupo de amigas.
Mais recentemente, instalou-se na margem oposta do rio, em Gaia, com o piano que a acompanhou toda a vida. Fez das residências Conde das Devezas a sua morada permanente, em 2010, e hoje vive autónoma num apartamento T1, rodeada dos objetos e memórias de uma vida plena. “Gosto muito de viver aqui, foi o único lar para onde podia trazer as minhas coisas, inclusivamente o meu piano, que decidi doar à Misericórdia”.
O piano ocupa uma posição cimeira no espaço contíguo à sala de jantar e cativa todos os habitantes em dias de festa. “Não há aniversário em que eu não toque, tenho tudo na cabeça, peças inteiras”, conta orgulhosa. Em segundos transforma-se, relatam testemunhas próximas. E a sala enche-se de luz e harmonia. “A música é a minha vida, não podia viver sem ela”.
Família ligada pelo oceano
Os avós maternos de Alice Jorge emigraram para o Amazonas, no Brasil, em 1888. Anos mais tarde, os pais, nascidos nas imediações de Viseu e Arganil, casaram e constituíram família em Manaus, de onde saíram definitivamente em 1957. Muitos antecedentes acabaram sepultados na capital do Amazonas e hoje parte da família ainda reside do outro lado do Atlântico.
Viver com autonomia e segurança
Alice Jorge vive nas Residências Seniores Conde das Devezas desde 2010. Constituídas por 50 apartamentos independentes e zonas comuns, as residências da Misericórdia de Vila Nova de Gaia conjugam o conforto e privacidade de uma habitação particular com a comodidade de um hotel, garantindo a prestação de cuidados pessoais e de saúde aos residentes.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas
Fotografia: Mário Pina Cabral