Recuemos no tempo, de modo a perceber a viagem do Policarpo, que se deparou com algumas curvas na estrada da vida. Desde cedo que se viu privado do meio familiar. Logo aos seis anos começou a escrever um novo capítulo da sua história. “Pelo que sei colocaram-me na Casa do Gaiato porque os meus pais não reuniam condições para me criar, pois não tínhamos uma vida nada fácil. Mas francamente o assunto nunca foi muito falado”.
A instituição, em Santo Antão do Tojal, abriu as portas de modo a acolher, educar e integrar o menino na sociedade. Esteve até aos 22 anos na Casa do Gaiato e recorda com saudade os tempos que já passaram. “Gostei muito de estar lá, tomaram conta de mim, cresci, aprendi, realizei várias coisas, como por exemplo, varri ruas, fiz limpezas, lavei a loiça, entre muitas outras tarefas”.
Mas houve algo que ficou para trás, tal como conta Policarpo ao VM, “tínhamos condições para estudar, mas a minha cabeça não deu”. Por isso, não sabe ler, nem escrever. O nome é a única coisa que com um lápis ou uma caneta desenha num papel.
Aos 22 anos quis mudar o rumo da sua história. Pediu para sair da Casa do Gaiato, que voltou a abrir portas, mas desta vez para deixar sair o menino que se tornou homem. Homem que voltou para perto dos pais e logo encontrou trabalho.
Trabalhou nas obras durante cerca de um ano, mas a procura de um “sítio melhor para estar” levou-o a mudar a direção. Da região saloia seguiu sozinho para o interior alentejano. Foi desta forma que os baldes de massa deram lugar à pastorícia. Durante muitos anos Policarpo esteve a tratar de ovelhas e vacas, mas não se ficou por aqui. Andou por outras herdades até ao momento em que ficou desempregado, situação que não o fez baixar os braços. Foi à procura de novas oportunidades e eis que bateu à porta do atual provedor da Misericórdia do Vimieiro, cujo pai deu emprego a Policarpo numa herdade da família. Do Vimieiro nunca mais saiu.
Atualmente, Policarpo vive num apartamento construído e equipado pela Misericórdia, localizado dentro da mesma. Para além de receber um vencimento, é vestido e alimentado pela instituição.
Sempre pronto a ajudar, Policarpo colabora em tudo o que é necessário, desde o auxílio com os utentes a pequenas obras de reparação, jardinagem, trabalhos na horta, no armazém. “Cuido também de um rebanho e na altura do cortejo de oferendas que aqui se organiza ofereço sempre um borrego”.
Há 21 anos que Policarpo está no Vimieiro. A pequena freguesia do concelho de Arraiolos passou a ser a sua morada oficial. “O tempo passa a fugir, a minha estadia aqui já é mais longa do que aquela que passei na Casa do Gaiato”, destaca com um sorriso rasgado na cara.
O mesmo sorriso que esteve presente durante toda a entrevista, quer dizer, quase toda, pois quando se perguntou qual o significado que a Misericórdia do Vimieiro tinha para ele, o sorriso ficou mais tímido e as palavras não saíam, mas o brilho intenso no olhar dizia tudo.
Policarpo perdeu os pais, não constituiu família, aliás revela ao VM “não fui muito de namoros”. Quem lhe resta são uns tios e primos, mas esses, nunca mais os viu. Mas família não é só uma questão de sangue, família é quem cuida e a Misericórdia do Vimieiro apoiou, valorizou e não deixou que Policarpo ficasse de mão estendida. Provedor, funcionários e utentes abraçaram-no de tal forma que Policarpo deixou bem claro: “aqui tenho uma família, gosto muito de morar e colaborar na Misericórdia”.
Uma família que não teve dificuldades em falar do homem que está sempre lá para tudo e todos. “Ele dá-se bem com todas as pessoas, está sempre pronto a ajudar”, “não tem vícios”, “é amigo do seu amigo”, “é um bocado a alegria da casa”, “todos têm um carinho especial por ele”.
O menino que cresceu na Casa do Gaiato estava longe de imaginar o que iria ser dele no futuro, mas a vida ofereceu possibilidades e oportunidades a Policarpo, que mesmo sem ler nem escrever, agarrou-as mostrando ser um verdadeiro sábio, afinal a vida não é só teoria.
Decisão de procurar nova vida
Policarpo pode ter saído da Casa do Gaiato, mas a Casa do Gaiato não saiu do coração de Policarpo. Já passaram muitos anos, mas o menino que se fez homem na instituição, em Santo Antão do Tojal, Loures, não esquece o tempo passado na instituição e ainda hoje recorda com saudade. “Fizeram muito por mim, sempre que podia dava lá um saltinho”. Foi com 22 anos de idade que Policarpo tomou a decisão de sair da Casa do Gaiato à procura de trabalho e novas oportunidades na vida.
Misericórdia é mais que uma casa
São 21 anos de trabalho, dedicação, amor, aventuras e histórias vividas numa casa que muito significa para Policarpo. “Eu moro dentro da Santa Casa da Misericórdia, esta é a minha família, quando precisei estenderam-me a mão e a partir desse momento nunca mais nos largámos”. Em altura de festas, como o Natal, Policarpo, habitualmente, recebe convites para não passar a consoada sozinho, de modo a celebrar esta data com o verdadeiro sentido que ela tem.
Rubrica 'Histórias com Rosto' | Voz das Misericórdias, Ana Machado