A equipa considera-a um exemplo de “envelhecimento ativo” e incentiva esta prática de exercício físico e o autocuidado junto dos residentes.
Mary herdou a fisionomia do pai [estatura média e tez morena] e o nome inglês por influência das amizades da mãe, que “era costureira das inglesas no Cabo Submarino, em Carcavelos" e “ui, arranjava-se bem”, recorda a filha, que pintou os lábios de vermelho e vestiu um casaco da progenitora para o encontro com o VM. Uma forma de homenagem velada, que se revela em vários momentos da nossa conversa.
“Vivi sempre [infância e juventude] em Paço de Arcos. Nasci lá. A minha mãe era de Cascais. Gostava muito de dançar e chegou a ganhar prémios”, contou orgulhosa, revelando a mesma paixão pela dança e convívio nos bailes onde a “sociedade” se juntava. Os jovens de Algés, Oeiras e Paço de Arcos tinham uma agenda social preenchida. “Eu dançava com o irmão da Paula Bobone, sem saber. Era uma zona cheia de abrasonados”, relatou divertida.
Foi numa destas festas que conheceu Fernando, o homem com quem casou e muito viajou. Primeiro Moçambique e mais tarde em Brasília, onde gostou do convívio com as populações locais. “Os brasileiros são boa gente, gostei de lá estar, e em Moçambique também”. A par destas estadias prolongadas no estrangeiro, recorda outras viagens a Espanha, França e Alemanha, mantendo sempre em vista o regresso a Paço de Arcos, local de afetos e memórias felizes.
Durante a nossa conversa, os momentos de lucidez são entrecortados com lapsos repentinos em que o olhar se ausenta. O sorriso é fugidio, mas regressa com algumas memórias da juventude ou quando se fala no Sporting Clube de Portugal, que chegou a ver jogar no estádio de Alvalade, com o pai. “Qual é o seu clube?”, pergunta aos jornalistas do VM, rematando: “também sou simpatizante do Benfica”.
A mágoa invade o rosto quando se lembra do maior desgosto da sua vida: “não tive filhos, queria muito ter rapazes, mas tive um problema no útero e fui operada. Abortei com quarto meses e meio. Ainda tentei adotar, mas o meu marido não quis”. O tema regressa várias vezes ao longo da conversa, assim como o encanto pela terra natal e as vivências da juventude.
A mudança de Paço de Arcos para Alfragide, onde está localizado o Lar de Santo António, foi motivada por preocupações de segurança e bem-estar e, até agora, a adaptação não podia estar a correr melhor. “Eu estava no centro de dia, mas saía cedo e passava muito tempo sozinha. As minhas primas arranjaram-me isto e o ambiente é muito bom. É uma família e tenho companhia à noite”, confirma Mary.
Atrás de si, as crianças da Escola Luís Madureira correm no recreio e evocam a liberdade de um tempo em que os pés eram rápidos e a mente voava sem preocupações. “Gosto muito de ver os miúdos”, suspira a nonagenária, lamentando a ausência dos filhos que nunca chegaram.
A diretora técnica, Maria Vicente, explica que esta proximidade entre as duas respostas sociais resulta de uma intenção do próprio fundador da Santa Casa - Luís Madureira - e gera dinâmicas muito benéficas para todos. As crianças recebem a visita de idosos na sala de aula, para partilhar testemunhos de vida e relatos de profissões de outrora, e os seniores são surpreendidos pelos mais novos no aniversário e outras datas especiais.
Os 96 anos de Mary foram celebrados a 7 de dezembro, com a pompa habitual, e o VM chegou, com uns dias de atraso, para renovar os festejos e deixar-se contagiar por esta vitalidade inabalável. Mary lança bolas no ar com uma pontaria certeira e supera-nos em rapidez e coordenação. Só falta o calor para podermos treinar no exterior. “Quem não gosta do verão e dias longos?”, remata na despedida.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas