O atual presidente da mesa da assembleia geral foi mesário, secretário e vice-provedor, desde que integrou a irmandade em 1982, e hoje divide os tempos livres entre a família e a instituição que viu crescer. Um relato na primeira pessoa, em que as palavras se multiplicam sob o “magnífico teto” da igreja preenchido de 55 telas que narram a vida de Jesus Cristo.
Ao longo de várias décadas, esta relação mediada por livros e pessoas singulares estreita-se em episódios rocambolescos, que envolvem a descoberta de um estudo de Josefa de Óbidos, cuja autoria era desconhecida, e o regaste de um retábulo flamengo esquecido num jazigo de uma capela. “Esta peça passou pela minha vida de forma surpreendente, num daqueles acasos que dão interesse às vidas. É um retábulo do século XVI, transportado de Bruxelas, que naufragou e foi guardado numa ermida construída perto do local onde deu à costa”, recorda entusiasmado. “São coisas que dão sal à vida de todos os dias”.
Aos 17 anos decide estudar história, movido pela paixão pelos livros antigos e história do seu país, mas não segue a via do ensino. A conjuntura política de então obriga-o a alistar-se no exército e a combater na Guerra Colonial, onde integra o Batalhão de Caçadores Paraquedistas, na Guiné Bissau. Momentos “muito difíceis”, em que foi ferido numa perna, num voo rasante sobre zona de mato, que vitimou um colega paraquedista.
A “sensação indescritível de liberdade e domínio da máquina”, que o faz vibrar no auge da juventude, é rapidamente suplantada pela experiência da paternidade, que o marca para toda a vida. “Já não sabia de que cor eram os olhos lindos das minhas duas filhas [mais velhas] por causa das deslocações frequentes em todo o país”, lamenta ao aproximar-se dos 30. Regressa então a Peniche, onde concorre à divisão de turismo na autarquia e se fixa definitivamente.
Pai de cinco filhos e avô de 12 netos (um deles com meses de idade), compara o crescimento abrupto da família ao “assoreamento” que transformou a ilha de Peniche numa península, no final do século XVI. “É um desassossego ver o mundo avançar tão rápido e saber que vão crescer num tempo tão diferente do meu”. Quando se juntam todos, são mais de 20 pessoas à mesa, vindos de Peniche ou de Lisboa.
Inspirado pela participação ativa dos pais na irmandade (a mãe, mesária e voluntária no hospital, e o pai, provedor de 1979 a 1987), Francisco Salvador inicia uma colaboração profícua com a Misericórdia de Peniche, na década de 1980. Começa por ler a documentação relativa à fundação (compromissos e estatutos), atividade (registo de irmãos, movimento de doentes etc.) e gestão de recursos (inventários de bens etc.), num total de 80 volumes, e regista os apontamentos dessa leitura atenta numa publicação editada pela Santa Casa.
Nessa incursão pelo arquivo histórico, descobre episódios de enterros de viajantes que faleceram ao largo da costa de Peniche, causas de morte invulgares (tiros de mouros vindos do norte de África visando o saque) e registos de encomendas de obras de arte para o teto e altar da igreja (retábulo de Josefa de Óbidos). As histórias, dispersas em folhas amarelas, cruzam-se num enredo único que faz cintilar os olhos azuis de Francisco Manuel Salvador.
Homem de fé, o irmão da Misericórdia de Peniche assume-se como cristão praticante, nos “pequenos gestos do dia-a-dia” e não apenas aos domingos, encarando a religião “como critério e não como norma punitiva, o que é mais exigente, mas mais interessante”. A maturidade da idade adulta trouxe-lhe o discernimento necessário para transformar os dogmas transmitidos na catequese do liceu em lições de vida que “hoje fazem sentido”.
A poucas semanas de completar os 69 anos de idade, Francisco Manuel Salvador confessa que a ligação à Misericórdia é vital para as décadas que já passaram e estão por vir. “É uma instituição com história, que é o que eu mais gosto, trabalhei com ela, vi-a a crescer e desenvolver a sua atividade [infância, terceira idade e saúde], a partir de quase nada”.
Homem de história
Livros antigos, arquivos históricos e obras de arte enigmáticas despertam o interesse e “dão sal à vida” do atual presidente da mesa da assembleia-geral da Misericórdia de Peniche. Francisco Manuel Salvador estudou História, na Universidade de Lisboa, na década de 1970, e embora não tenha enveredado pela via do ensino ou investigação dedicou-se, anos mais tarde, ao estudo da história da cidade e Misericórdia que viu crescer ao longo da vida.
Ligação à comunidade
“Mantive sempre uma ligação à comunidade de Peniche, através de várias instituições, onde se inclui a Misericórdia”, revela no início da conversa com o VM. Paralelamente às funções que assumiu nas autarquias de Óbidos e Peniche, Francisco Salvador colaborou com a irmandade, a partir de 1982, como irmão, secretário e vice-provedor. Nesse período inicial, fez a leitura dos “livros históricos, num total de 80, que permitiu tirar ilações da evolução da instituição ao longo dos tempos”.
Rubrica 'Histórias com Rosto' | Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas