Cabul, 30 de agosto de 2021. Foi neste dia que os últimos militares norteamericanos embarcaram rumo a casa, colocando um “ponto final” a duas décadas de presença do Exército dos EUA no Afeganistão.A retirada americana aconteceu apenas duas semanas após a tomada do poder pelos talibãs naquele país, num regresso aos dias de repressão que fez muitos afegãos abandonar as suas terras.

Kaihan Hamidi assistiu a tudo isto a partir da sua galeria de arte. “A vida passou a ser fora do normal”, sintetiza este pintor de 40 anos, conhecido no meio artístico de Cabul como “o Deus da Aguarela” (God of Watercolor, em inglês) e que chegou a ter mais de uma centena de alunos a aprender consigo a arte de pintar.

Semanas depois, em outubro, Kaihan e a família – a mulher e os dois filhos menores, um menino de 12 anos e uma menina de seis – deixaram o Afeganistão rumo a Doha, no Qatar. A viagem dos quatro prosseguiu, em dezembro, para Lisboa e só terminou em março deste ano, quando chegaram a Beja, onde residem desde então em instalações cedidas pela Misericórdia.

“Portugal deu oportunidade a alguns ativistas de arte de deixarem o Afeganistão, através de uma instituição afegã de grande prestígio chamada Instituto Nacional Afegão de Música, e eu fui incluído na lista como colaborador desta instituição”, conta Kaihan.

Natural da província de Ghazni, no centro do Afeganistão e a “meio caminho” entre as duas maiores cidades do país, Cabul e Kandar, Kaihan Hamidi nasceu no seio de uma família   numerosa, tendo mais quatro irmãos e três irmãs. O pai – recentemente falecido – foi lojista em adolescente, mas depois trabalhou na construção civil e na agricultura, onde era ajudado pela esposa.

O afegão acabou por não seguir as “pisadas” dos progenitores, uma vez que as artes sempre foram o seu mundo. Autodidata, faz peças de artesanato em osso de camelo, mas foi na pintura a aguarela que se especializou. Gosta sobretudo de trabalhar “a sombra e a luz”, como mostram alguns dos seus trabalhos sobre a paisagem urbana de Cabul.

“Sempre tivemos [no Afeganistão] muita tristeza ao longo da nossa história. Dei sempre o melhor para abordar esta questão, de forma a que, ao verem os meus quadros, se sintam melhor na vida. Penso que essa era a necessidade das pessoas”, diz.

Foi na capital afegã que Kaihan teve a sua própria galeria de arte durante oito anos, conta o artista, que chegou a apresentar os seus trabalhos “em algumas exposições nacionais e estrangeiras”.

Numa ocasião, teve mesmo a oportunidade de “representar” um clube de arte europeu em Cabul. “Infelizmente, devido à falta de um local adequado e às ambiguidades e acusações que nos poderiam ser feitas, não pudemos prosseguir”, conta.

Nos últimos tempos passados em Cabul, a par da arte, Kaihan dedicou-se ao projeto de conceção do primeiro carro desportivo feito no Afeganistão. Uma ideia que acabou por “morrer na praia”, com a chegada dos talibãs ao governo. “Faltavam apenas quatro ou cinco meses para termos o protótipo acabado”, lamenta. “Mas todos nós, apesar de separados e em países diferentes, mantemos vivo o sonho de terminar este projeto”, acrescenta.

Com os talibãs no poder, a vida de Kaihan mudou drasticamente. “Passei a estar em reclusão, lutando para não me meter em problemas, especialmente sobre o trabalho, para não ser diretamente interrogado e abusado”, confidencia.

A tranquilidade só foi devolvida à sua vida com a chegada a Beja, cidade onde se sente como “em casa”, com pessoas “gentis e amáveis” e onde a Misericórdia tem providenciado “tudo” o que a sua família precisa.

“Já estamos a viver aqui há um mês e, pouco a pouco, ganhei um sentimento de pertença a esta cidade. A adaptação tem sido muito fácil, apesar de tantas diferenças culturais, e o único problema que temos é a língua. Caso contrário, é como se vivesse entre o meu próprio povo”, diz.

Os dias de Kaihan são agora passados a pintar e, quando “o tempo está bom e ensolarado”, a caminhar pela cidade. Longe está Cabul, para onde não pensa (para já) regressar. “Espero e desejo ver um Afeganistão onde a democracia prevaleça. Gostaria de esperar por isso, mas não sei o que irá acontecer”.

Voz das Misericórdias, Carlos Pinto