Foi esta experiência que lhe deu força para lidar com o isolamento que a pandemia traz associado, sobretudo na população mais envelhecida. “Nós, médicos de família, já lidávamos muito com isso, porque uma das coisas que mais acontece no nosso dia a dia são as consultas com os idosos, a maior parte vinha às consultas porque tinham alguém com quem falar, alguém que os ouvisse, eu percebi isso em Unhais da Serra. A solidão é das coisas mais complexas do ser humano e isso com a Covid agravou-se.”
Quando foi decretada a pandemia pela Organização Mundial de Saúde, em março de 2020, Eugénia Calvário estava na coordenação do centro de saúde da Covilhã e os desafios eram diários.
“Foi um desafio, uma fase muito complicada que me tirou muito sono, muita vida em família, muita preocupação. Obrigou-me a pensar muito, a ler bastante, estar muito atualizada, prevenir, fazer planos de intervenção precoce, de março de 2020 a maio de 2020 eu fiz seis planos para o centro de saúde da Covilhã.”
Em agosto decidiu abandonar as funções de coordenação. “Ninguém estava preparado para isto, eu cheguei a um ponto em que disse chega para que possa vir outra pessoa mais fresca com uma posição diferente.” Considera que na vida é preciso saber não estar agarrada a lugares. Hoje, em fim de carreira, considera-se uma pessoa “feliz e realizada, gosto de lidar com pessoas, ouvir os outros e de estar atenta aos problemas dos outros, acho que foi também por aí que acabei por aceitar o desafio de trabalhar com os doentes alcoólicos”. Este, foi, talvez, um dos desafios mais importantes da sua vida profissional. “São problemas complexos, ao nível pessoal, familiar e laboral”, mas quanto maior é o desafio, maior é a recompensa. “É extremamente gratificante quando conseguimos recuperar uma pessoa, uma vida, ganha autonomia, uma vez que o alcoolismo é uma dependência, recuperar uma pessoa é recuperar uma família, para mim foi o maior desafio, aprendi a comunicar com os outros, a estar do lado de lá.”
Foi com este espírito que aceitou integrar a mesa administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Fundão, há cerca de seis anos. “O objetivo era o de consultoria na parte da saúde uma vez que a instituição é grande”. O primeiro mandato foi para perceber as necessidades nesta área: “criar um gabinete de saúde constituído por médicos, enfermeiros e profissionais de outras áreas como nutrição, fisioterapia, terapia da fala”.
Esta foi também uma experiência enriquecedora. “Não tinha noção, até entrar na Santa Casa, que o cuidar passa muito pela área da saúde, a pandemia pôs isso à prova, nós necessitamos de uma organização de saúde dentro das instituições que cuidam de idosos, uma equipa de saúde estruturada, em tudo semelhante aos cuidados de saúde numa retaguarda, cuidar deles de acordo com as patologias, criando-lhes condições de melhor qualidade de vida, de mobilidade.” Hoje continua a dar o seu contributo. “Conseguimos ter um grupo de profissionais mais alargado e cada ERPI tem o seu médico e equipa de saúde formada.”
Conciliar a vida profissional com a sua família, nem sempre foi tarefa fácil. “Houve ali uns anos em que tive uma vida extremamente ocupada, fazia urgências, tinha o centro de saúde ainda dava aulas na faculdade, dou por mim a pensar que, provavelmente, perdi alguns momentos que deveria ter acompanhado, tentei o mais possível estar presente, mas sempre foi, e ainda é, em primeiro lugar a minha família.”
Pandemia foi desafio mais difícil
Eugénia Calvário tem 64 anos e no próximo ano atinge a idade da reforma. Nunca pensou que, ao fim de 38 anos de serviço, tivesse um desafio tão difícil como a pandemia. Em março de 2020, quando tudo começou, estava na coordenação do centro de saúde da Covilhã e já fazia parte da mesa administrativa da Misericórdia do Fundão, um desafio que aceitou com o mesmo espírito de voluntariado que sempre praticou ao longo da vida.
38 anos a lidar com pessoas
Se tivesse de escrever um livro sobre os 38 anos de carreira, Eugénia Calvário escolheria o título “O ser humano é um ser encantador” porque retrata bem a vertente humana com que um médico de medicina geral e familiar tem de lidar todos os dias. Além disso, acompanha desde 1992 doentes alcoólicos, o que considera ser um dos marcos mais importantes da sua vida profissional que passou ainda por dar aulas na Universidade da Beira Interior.
Voz das Misericórdias, Paula Brito