O som daquele violino, fabricado no ano de 1742, em Veneza, Itália, transmite a saudade duma vida preenchida. Lembranças de quem viveu a vida que sempre quis, apesar das dificuldades. Mais uma história com rosto e com muito valor.

Januário Joaquim Fernandes, residente no Lar Maria Luísa, da Misericórdia de Vila Nova de Cerveira, tem 91 anos, feitos em outubro, mas é dono de uma lucidez e vitalidade dignos de admiração. Tem uma história de vida nada comum. E fica muito orgulhoso – e algo comovido - quando relata as passagens da sua mocidade. 

“Este violino que a senhora aqui vê foi fabricado na Itália, em Veneza, no ano de 1742, e depois foi vendido para os Estados Unidos, para um violinista profissional. Depois do violinista falecer a viúva vendeu para um emigrante português, para a filha desse senhor aprender. Mas essa rapariga não conseguiu aprender nada e então eles, uma vez aposentados, vieram para Portugal e trouxeram o violino e vieram viver para uma casa que já cá tinham, em Campos (a 6 km de Vila Nova de Cerveira) e ainda tinham lá isto (o violino), que não lhes servia para nada”, é assim que inicia o seu delicioso relato.

Januário conta que desde pequeno sempre sentiu o gosto pela música. “O meu pai nunca se importou com este meu gosto, trabalhávamos no campo, mas eu nasci com o bichinho da música. Eu cheguei a fazer flautas de cana e tocava aquelas ‘larós-larós’ da rua. Ia levar os bois ao campo e tocava”.  

O gosto acabou por levá-lo a Orquestra Camponense. “Um dia apareceu na nossa casa um senhor também chamado Januário. Ele andava a organizar uma nova orquestra com filhos dos elementos que pertenceram à antiga orquestra da vila. Ele sabia que eu tinha gosto pela música e veio-me perguntar se eu queria fazer parte da orquestra. Claro que eu aceitei muito contente”.

Januário, apesar de ter nascido com este gosto e aptidão pela música, nunca conseguiu comprar um instrumento. “Eu tocava na orquestra com violinos emprestados e, naquela altura, um elemento da nossa orquestra gostou do violino que o casal trouxe da América e decidiu comprá-lo por 500 escudos, que era bastante dinheiro! Ele usou algum tempo, depois pensou em aprender a tocar saxofone e vendeu o violino. E desta vez a compradora foi a minha esposa, na altura ainda namorada, para me oferecer”.

O senhor Januário confessa que a prenda feita pela sua namorada foi uma alegria muito grande. Ele nunca conseguiu comprar um instrumento, a vida do campo era dura e aquilo que se ganhava era muito pouco. “É um violino muito bom, tem um som muito bom (toca o violino para mostrar o som), como vê, isto já não é um som perfeito. As articulações já não me permitem tocar como dantes, já são 91 anos”, confessa um tanto desalentado.

O amor pela música e pelo violino acompanhou o casal pela vida fora. “Eu a minha esposa, que também canta muito bem, fizemos parte da tuna da universidade sénior”. Por sua vez, ela confessa que foi na tuna onde aprendeu a cantar mesmo bem. “O professor de vozes era muito bom e eu adorava cantar. Nós com a música divertíamo-nos imenso, era uma vida feliz”, confessa comovida. 

Quando ouvimos os relatos chegamos a sentir a paixão e o gosto que ainda hoje têm pela música. O casal só tem um filho. “Casou aqui em Cerveira e temos um neto que é a luz dos nossos olhos. Tem 32 anos e trabalha no Douro, naqueles barcos que fazem os passeios e as travessias pelos rios. Ele é guia turístico, é assim que se chama”, refere com inegável orgulho o senhor Januário.

Conta que nem o filho nem o neto herdaram este amor pela música. “O meu filho quando era mais novo começou a querer aprender a tocar, mas não se interessou porque hoje em dia há outros divertimentos que no meu tempo não havia. No meu tempo a música era um refúgio, um escape, uma fonte de divertimento”.

“Mas é claro que eu vou deixar o meu violino ao meu neto! Embora ele não saiba tocar, mas quero que o conserve como recordação. Porque este violino é muito antigo, tem sofrido várias reparações e tinha cá dentro um papel que dizia cópia de Michel (provavelmente nome de quem o construiu) ano 1742, e com os arranjos o papel desapareceu e tenho muita pena porque era a prova da antiguidade. Este violino veio das mãos dum artista e veja todas as voltas que já deu! É daquelas voltas que a vida dá, coisas que acontecem, aquilo que chamam de destino”.

Música para animar bailes

A Orquestra Camponense teve o seu auge nos anos 50. “O nosso professor era o José Ferreira Pereira, mais conhecido como José da Emília, que muito de música. Começamos no ano 1947 e nos anos 50 já tocávamos algumas coisinhas. Quando essas aulas começaram éramos 20 e tal alunos, mas acabamos por ficar só uns doze na orquestra. Quando já nos sentíamos à vontade pedíamos ao maestro José para organizarmos um baile. As pessoas batiam palmas e pediam para repetir! Correu muito bem”.

Uma década de orquestra

Januário Fernandes contou ao VM que as atuações da orquestra aconteciam com bastante frequência no teatro de Vila Nova de Cerveira. “Tínhamos um repertório suficiente para ir tocar a qualquer lado, mas infelizmente, depois de uma década, a orquestra acabou. Uns emigraram, outros casaram e modificaram as suas vidas, a outros aconteceram coisas desagradáveis que os impediu de continuar e foi assim que vimos chegar o fim da nossa orquestra”, conta com desilusão no olhar.

Rubrica 'Historias com Rosto' | Voz das Misericórdias, Vanessa Reitor