No dia do nosso telefonema, Francisco Brás orienta as pinturas da fachada da igreja da Misericórdia, no centro da vila, para receber o Festival do Contrabando e conta-nos como reparte os dias entre a paisagem e as ideias que irrompem a cada instante. “Quero fazer tudo e tenho tempo? Não sei (risos)”, brinca. Nesta gestão das horas, diz-nos que quando “a causa é justa só posso fazer força para que as coisas aconteçam”.
Por isso, quando lhe lançaram o desafio de reativar a Misericórdia de Alcoutim, “uma casa que estava moribunda”, aceitou sem hesitar. “Como gosto de me colocar à prova, vim meter-me em sarilhos”, partilhou com o VM em tom de brincadeira, durante a sessão de acolhimento aos novos provedores no início de março (ver página 4).
Tudo começou em 2013, ao regressar ao monte [Cortes Pereiras] onde nasceu, a sete quilómetros de Alcoutim. A fuga para o campo, de onde guardava “memórias muito doces” das férias com os avós, foi um momento de viragem, após ser forçado a reformar-se por motivo de doença. “Nos primeiros dois anos, criei uma horta, relacionei-me com as pessoas e fiz grandes passeios e meditações. Sentia a necessidade de estar ao ar livre e ver a natureza crescer. Não me apetecia ler um livro, só queria contemplar. Foi regenerador”, confessou.
Depois de repor energias, retomou gradualmente a atividade a que estava habituado, em função das necessidades locais. Criou um grupo experimental para levar o teatro às aldeias e aos montes e fundou um grupo de teatro com os trabalhadores da autarquia. Na génese de todas estas iniciativas estava uma vontade de “partilhar o seu conhecimento, valores e formação” e de levar o teatro a “pessoas que nunca tinham visto um espetáculo ou experimentado o prazer de atuar”.
Assumindo o teatro como um espaço de encontro com a comunidade, Francisco interessa-se desde cedo pela formação de públicos e integração pela arte. O contacto com a deficiência, em 1986, foi decisivo no seu percurso. Começou a dar aulas na cooperativa de ensino especial Crinabel, onde, com os alunos, fundou um grupo de teatro que dirigiu durante 21 anos. “Conhecer pessoas tão nobres e puras mudou o meu propósito de vida”.
Refletindo sobre esta vivência, considera que o teatro ajudou a compreender o que é “pertencer a uma minoria” ao sentir na pele o estigma de não “ter um emprego digno”. Quando se estreou nos palcos, “ser ator era um bocado duvidoso, apesar de hoje ter outro estatuto”.
A paixão pelo teatro chegou na infância, através do pai. Aos domingos, o progenitor fazia serviços nos teatros e levava os filhos às matinés, despertando neles o fascínio pelos atores e personagens em palco. O talento foi aprimorado no curso de formação de atores no Conservatório Nacional, somando, em 45 anos de carreira, dezenas de participações no teatro, rádio, televisão e cinema (ver caixa).
O regresso às origens permitiu-lhe aprofundar a função social do teatro e ir ao encontro das necessidades de um território tão diverso quanto isolado: um “paraíso” para os de fora, mas para os habitantes, na sua maioria idosos, “a pré-história, com transporte uma vez por semana”. Por isso, brinca, é o “uber aqui do monte”.
Os seus planos, para o futuro próximo, são acompanhar o crescimento de duas netas e reativar a Santa Casa “de forma sustentável, percebendo onde pode atuar”. Em pequenos passos, a casa reorganiza-se, com pinturas na igreja, uma quermesse para angariar fundos e projetos para “responder às necessidades dos poucos que aqui estão”. Enquanto sonha e avança, o provedor imagina um “centro de dia virado para as artes e ofícios, onde se convive, recupera tradições e valoriza a gastronomia”. Mais uma vez, o teatro e a arte ao serviço das pessoas.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas