As janelas do Hotel Santa Bárbara, da Santa Casa da Misericórdia de Boticas, têm agora outra beleza.

Quem ali entra encontra peças de arte que outrora não passavam de caixas de madeira. O grande responsável é João Martins. Com 89 anos, transforma caixas de fruta, que iriam para o lixo, em verdadeiras obras de madeira, que deixam qualquer um de queixo caído.

Já não tem dois dedos e embora admita que lhe façam falta, não parece nada. Igrejas, canastros, carros de bois, arados, faz peças para todos os gostos e feitios.

Tudo começou quando ainda era um jovem. Natural de Covas do Barroso, quando era novo andava com as cabras, porque o pai o obrigava. Era pastor e nunca chegou a ir à escola. Mas sempre ambicionou mais. Foi aí que a carpintaria entrou na sua vida. Aos 20 anos teve a oportunidade de aprender a trabalhar a madeira. “Um amigo pediu a uns mestres para me ensinarem a arte de carpinteiro. Fui para lá aprender a arte no inverno”, contou, acrescentando que, mais tarde, já “fazia carros de bois, janelas, portas”.

No entanto, acabou por deixar a terra e ir para o Brasil, onde esteve mais de 30 anos. Durante algum tempo trabalhou de “dia e de noite”, mas numa paixão que não era a sua. Tinha de ganhar dinheiro e, por isso, não teve alternativa se não aceitar o emprego que aparecia. Mas foi enquanto trabalhava num mercado que o cenário mudou e voltou à arte que tanto gosta. “Fiz umas prateleiras com as caixas do bacalhau, pedi ao patrão ferramenta e ele deu-me dinheiro para a ir comprar. Assim que ele viu as prateleiras feitas, perguntou-me se era carpinteiro e eu disse-lhe que na terra trabalhava como carpinteiro, mas no Brasil era tudo diferente.

Ele olhou para mim e perguntou-me se eu queria um emprego melhor. Eu ajoelhei-me na frente dele e pedi-lhe pelas almas para me arranjar um emprego melhor. Depois, ele mandou-me para outra empresa e trabalhei como carpinteiro durante bastante tempo”, lembrou com um sorriso no rosto.

Ainda trabalhou enquanto carpinteiro no Brasil durante alguns anos, mas como homem de negócios que era, decidiu abraçar outros projetos e abriu um café, onde admitiu ter ganhado muito dinheiro. Mais tarde voltou para Portugal e continuou no ramo do comércio, deixando de lado a madeira.

Mas quis o destino que agora, enquanto utente da Misericórdia de Boticas, voltasse a fazer o que tanto gosta. É um ‘dois em um’: dá uma “nova vida” a caixas que iriam para o lixo e “mata o tempo”. “Faço para me entreter. Enquanto me entretenho passo o tempo”, disse.

Começou por fazer um canastro, que, para os mais distraídos, é uma estrutura em pedra onde os agricultores guardam as espigas de milho. Mas foi desafiado a fazer uma igreja. “Eu fiz um canastro e uma mulher veio aqui e disse-me para fazer a igreja e eu fui lá em baixo, desenhei a igreja num papel e fiz a igreja”, referiu.

Quem vê as obras de arte de João Martins fica certamente a pensar que está munido de grandes ferramentas, mas engana-se. No bolso traz consigo um pequeno canivete, de meia dúzia de centímetros, que usa para trabalhar a madeira. Torna-se difícil de acreditar, até se ver com os próprios olhos.

“Isto aqui é tudo arrematado, aqui tem outro por fora, aqui é o relógio, aqui é a torre do sino. Está igualzinha à frente da capela”, explicou detalhadamente a estrutura que tinha no colo.

Reconhece que é um trabalho que lhe leva alguns dias, até porque o faz devagar, mas é o seu passatempo. Agora mais cansado, pouco faz. Sente-se desmotivado, talvez influência do tempo, talvez influência da idade. Mas o amor pela madeira, nunca mudará.

Voz das Misericórdias, Ângela Pais