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- Santiago do Cacém | História de vida contada nas páginas de um livro
Jorge Nunes nasceu a 27 de maio de 1937, na casa da avó materna, em Melides. Filho de uma criada de servir e de um almocreve – indivíduo que conduz animais de carga -, motivou a união do casal, que passa então a residir no monte da Portela, em São Francisco da Serra. Vive no campo desde que tem memória – as primeiras remontam aos dois anos de idade -, e reconhece que os sacrifícios e labuta diária lhe moldaram o carácter, marcado pelo espírito combativo e solidário. Até hoje, o seu lema é “acreditar e lutar”.
Apesar das injustiças que testemunhou, considera-se afortunado por ter concluído a quarta classe “quando a maioria dos filhos dos lavradores era analfabeto”. O caminho para a escola era feito descalço, ao longo de quase 10 quilómetros, em terrenos sulcados na pedra. Sem que isso vergasse a vontade de aprender.
Aos 12 anos ganhou o seu primeiro salário: 13 escudos. “Fiquei orgulhoso, andava a apanhar mato numa propriedade”. Seguiram-se outras funções: lavrar terra, alcatroar estradas e, mais tarde, funcionário numa “casa de ferro velho, que vendia roupa, calçado e mobílias”.
A entrada na carreira militar, aos 20 anos, traz-lhe confortos nunca antes experimentados. Come, pela primeira vez, uma costeleta e uma generosa posta de bacalhau. Até então, as carnes nobres eram destinadas à venda e produção de enchidos. Em simultâneo, o jovem recruta disputa provas de ciclismo com a camisola do Sport Lisboa e Benfica, o que lhe “valeu uma tropa excelente, porque entrava e saía à vontade para treinar, e fazia as refeições onde queria, na messe dos sargentos, dos oficiais e praças”.
Terminado o serviço militar, vê-se obrigado a deixar o ciclismo, desporto exigente e dispendioso para um jovem empregado numa casa de ferro-velho. A vontade de ir mais longe dita, contudo, outro destino para o jovem alentejano. Sem conseguir emigrar, por falta de um documento, decide dar continuidade aos estudos. E eis que passa da venda de ferro-velho para escriturário do hospital Conde Bracial, da Misericórdia de Santiago do Cacém. “Foi uma mudança radical na minha vida. Abriram-se os meus horizontes”. Surge aqui a primeira ligação à instituição, que viria a servir como vice-provedor, em 1990, e provedor, a partir de 1999.
À margem desta atividade, faz escritas de contabilidade a comerciantes e fábricas, de Santiago e Sines, conclui o curso de guarda-livros, para responder à crescente exigência das funções, e ministra cursos de alfabetização para agricultores, num alpendre cedido por um amigo.
O espírito empreendedor e aventureiro começa a revelar-se então com a abertura de estabelecimentos comerciais (lojas de pronto-a-vestir e eletrodomésticos), que mais tarde vendeu quando se dedicou a tempo inteiro à atividade bancária. Quem acompanhou o seu percurso, na Caixa de Crédito Agrícola, reconhece o seu papel na consolidação e afirmação deste movimento mutualista enquanto instrumento de desenvolvimento local.
Na apresentação da obra “Jorge Nunes: Um Homem à Frente do Tempo”, o presidente da Câmara Municipal de Santiago do Cacém reconheceu o “trabalho pioneiro que desenvolveu à frente do Crédito Agrícola” e o seu contributo no concelho, legando “uma grande obra de que são exemplos a unidade de cuidados continuados, a creche e o lar de idosos”.
Embora a política nunca o tenha seduzido, assume funções na junta de freguesia, câmara e, mais tarde, assembleia municipal, na transição de regime político. “Sempre fui independente. Não sou fanático do desporto, política ou religião”.
O que sempre o interessou, nos desafios que abraçou ao longo da vida, foi o serviço público e bem-comum. “Gosto de ajudar e contribuir como posso. Esta é a minha forma de estar.” Foi por isso inevitável que o seu percurso se cruzasse com o da Misericórdia, que ajudou a crescer, alargando o âmbito da sua atuação e qualificando as suas respostas sociais.
Sob a sua égide, nasceu o Lar de Santa Maria, as Residências do Pinhal, a Unidade de Cuidados Continuados São João de Deus – das primeiras do país -, a Unidade Conde do Bracial e foi alargado o apoio à infância. “Foram uma série de projetos em simultâneo e até hoje não houve um dia em que não cumpríssemos as nossas obrigações. Muito rigor nas contas”.
Aos 85 anos, está de saída da Misericórdia, mas ainda tem projetos guardados na gaveta, que revela com o entusiasmo jovial e sorriso fácil que o caracterizam. “Gosto de criar e isso dá-me vida e obriga-me a estar cá ainda algum tempo”.
A “sorte” para Jorge Nunes é uma forma de encarar as adversidades e superar obstáculos. Sobreviveu a um acidente de bicicleta que o deixou em coma durante três dias, venceu um cancro e transmite essa tenacidade à descendência, que reúne todas as semanas na quinta de família. São parte do seu legado de afetos e transformação num território recortado por diferentes paisagens, desde montados, olivais, vinhas e o mar no horizonte.
“Para tudo isto, é preciso ter uma companheira assim, que compreende as noites e horas que se faltam em casa”, comenta referindo-se a Maria Augusta, mãe dos seus dois filhos. “E agora vou para outra missão”, diz-nos na despedida. Os dias de Jorge Nunes têm mais que 24 horas.
Para conhecer outros capítulos deste enredo recomendamos a leitura da biografia “Jorge Nunes: Um Homem à Frente do Tempo”, apresentada a 28 de junho, na presença de Manuel de Lemos, presidente da UMP, e Vítor Melícias, presidente honorário da UMP.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas