A tarde de domingo (24 de julho) foi de festa no Casal do Cimeiro, localidade no concelho de Soure. O salão da Associação Cimeirense de Solidariedade Social (ACSS) poucas vezes reuniu tanta gente para assistir a uma peça de teatro, sobretudo porque os atores fazem parte da própria comunidade.

A estreia de ‘Retalhos’, espetáculo de homenagem ao escritor Fernando Namora, baseado na sua obra ‘Retalhos da vida de um médico’, envolveu a participação ativa de idosos das várias freguesias deste município do distrito de Coimbra, os quais regozijavam com a recriação de passagens do romance sobre as vivências de um jovem médico de província, retratando a realidade social das comunidades rurais da primeira metade do século XX.

A atividade ‘Juntos no Teatro’ foi organizada no contexto do projeto ‘CLDS 4G Soure… Toca a Mexer!’, que tem como entidade coordenadora e executora a Misericórdia de Soure e visa combater a exclusão social, através de uma intervenção de proximidade junto da população sénior.

Sob a organização de Ana Quitério e a encenação de Rui Manuel Almeida, a par da criação do espaço cénico pelo grupo ‘Trai-la-ró – Teatro ACSS’, foi possível estimular a participação (enquanto atores, músicos e cantores) de mais de 60 destinatários deste projeto que promove o envelhecimento ativo.

A peça agora estreada e que será também apresentada nas restantes freguesias do concelho – num conjunto de mais de 13 sessões – incide na importância e na influência da passagem do médico-escritor Fernando Namora pela Beira Baixa, onde o clínico sentiu dificuldades em ser aceite pelas populações locais, que tradicionalmente recorriam a charlatães, crendices e superstições.

Na verdade, todos andavam à procura do sentido da vida, entre a desconfiança, as desventuras quotidianas e a falta de pão. Muito vigiado pelo olhar desconfiado dos populares, Fernando Namora conta que, “ali na aldeia […], um médico […] tem de salvar uma pessoa da família antes que conquiste a intimidade e a confiança de um lar”. Curiosamente, o seu primeiro apelo profissional nessa localidade beirã esteve relacionado com a morte de uma rapariga, por afogamento. São reveladoras as palavras iniciais do romancista: “Com vinte e quatro anos medrosos e um diploma de médico, tinha começado a minha vida em Monsanto.”

Na oportunidade da estreia da peça ‘Retalhos’, o provedor da Misericórdia de Soure destacou a importância do trabalho social de toda a comunidade. Manuel Ramos Martins, satisfeito com o espetáculo a que assistiu, acentuou o trabalho desenvolvido junto destas pessoas idosas, fortalecendo-lhes a autoconfiança e a autoestima, bem como reforçando os seus papéis e interações sociais.

A Misericórdia de Soure, com a progressiva normalização do seu funcionamento e com a racionalização dos seus recursos humanos, passou a desenvolver atividades culturais e recreativas com reflexos diretos no bem-estar dos idosos, proporcionando-lhes terapia ocupacional, favorecendo a interação geracional e evitando o isolamento social. Este espetáculo é a confirmação desse cuidado constante por parte da instituição em querer melhorar a qualidade de vida e o equilíbrio emocional dos idosos, numa dinâmica promotora de um envelhecimento com dignidade, potenciando o próprio território sourense e capacitando pessoas.

Ao destacar o envolvimento do executivo municipal e das juntas de freguesia, a par das forças vivas das populações, Manuel Ramos Martins sublinhou a importância do “desafio lançado à Misericórdia para abraçar este projeto do Programa de Contratos Locais de Desenvolvimento Social”, o qual, à semelhança do projeto da geração anterior (CLDS 3G), compreende um ciclo de três anos.

“A satisfação das populações e esta mobilização ativa da comunidade, a exemplo da experiência do anterior ciclo do programa CLDS, é muito gratificante”, declarou o provedor, convicto de que os restantes espetáculos cénicos “vão pôr a mexer muita gente”. O dirigente da Misericórdia de Soure frisou ainda que “são iniciativas como esta que contribuem para o envelhecimento ativo, tirando os seniores de casa e trazendo-os para as associações, num saudável convívio comunitário, combatendo a exclusão social e o isolamento”, incentivando a cooperação e a interação.

No grupo dos músicos, Manuel Anjo, com 72 anos de idade, nasceu no Casal do Cimeiro, onde vive e toca acordeão há quatro décadas. Segundo afirmou, intervir neste espetáculo de homenagem ao escritor Fernando Namora “é uma boa experiência”. “Para mim, é fácil, porque me sai naturalmente. É uma boa iniciativa para que as pessoas destas idades participem”, confirmou o acordeonista que, tal como o seu companheiro de conversa, está “muito satisfeito” com a sua participação. “Tenho aprendido bastante. Foi uma grande motivação para mim, que sentia algum isolamento”, acrescentou o sourense Manuel Carvalho.

Por sua vez, Lucinda Bernardes, nascida há 71 anos em Samuel e a viver em Soure, estava encantada com o seu desempenho no papel da “salgadeira” – aldeã que, entre outros, confrontou o médico com o poder das mezinhas para curar as maleitas. Por isso, “esfregava a língua com sal todos os dias e bebia água salgada”.

Silvina Gante, com 84 anos, assumiu dois papéis: o da mulher que faz a benzedura para tirar o quebranto e o mau-olhado e mãe da rapariga que morreu afogada. “Acho que esta iniciativa faz bem, porque ocupa as pessoas de idade avançada”, expressou, com um sorriso rasgado e franco. Outra das intervenientes na peça “Retalhos” é Maria José Ramos, natural do lugar de Simões e que assume o desempenho de uma verdadeira aldeã de outros tempos, cujo filho “estava atacado de bronquite”. “Estou muito satisfeita com a experiência e quero continuar”, salientou.

Em declarações ao VM, o encenador Rui Almeida, diretor artístico do ‘Trai-la-ró – Teatro ACSS’, referiu que aceitou o convite da Misericórdia de Soure para desenvolver este espetáculo “como um desafio cénico”, sobretudo porque “traz 65 pessoas mais velhas a participarem numa peça”, a partir de um romance de Fernando Namora, clínico e escritor neorrealista que celebraria um século de vida em 2019. “O espetáculo teve de ser adiado por causa da pandemia, mas a ideia subjacente é a mesma”, afirmou Rui Almeida, o maquinista de comboios que se dedica ao teatro amador “desde sempre”.

“Os atores são pessoas que a Misericórdia acompanha, embora não sejam residentes na instituição”, esclareceu o encenador, que privilegia “um trabalho assertivo, contando com a cooperação de todos e aproveitando as vivências de cada um dos componentes do vasto elenco”. “Eles são excecionais”, concluiu Rui Almeida.

Voz das Misericórdias, Vitalino José Santos