O VM ouviu as histórias de superação de Ovar, Aveiro, Nordeste, Santo Tirso, Vila Nova de Foz Côa, Melgaço, Monção e Cinfães, pela voz das lideranças intermédias no terreno, para lembrar as vítimas da Covid-19, os cuidadores que fazem da sua vida uma missão e as estratégias de liderança por empatia, que dignificam o indivíduo através da pertença ao grupo.

Para a edição de Julho/Agosto, recolhemos testemunhos de profissionais (diretores técnicos, auxiliares, enfermeiros, etc) familiares e utentes de Misericórdias afetadas pelo vírus.

Maria Manuela Oliveira
Aveiro

Maria Manuela Oliveira, 64 anos, perdeu a mãe para a Covid-19. Iria Azevedo tinha 88 anos quando faleceu. Ao funeral foram cinco pessoas. Apesar de estarem juntos, Maria Manuela guarda a sensação de que não houve oportunidade para dizer nada. Tudo era novo, confuso e estranho. O silêncio sobre o assunto imperava no seio familiar. Uma espécie de nuvem que paira sobre as cabeças, descreve. “Todos estavam a passar pelo mesmo e o melhor testemunho que lhes podia dar era segurar-me por dentro. A família também é uma equipa e importa gerir as emoções de quem está connosco”. Do surto no lar da Misericórdia de Aveiro recorda a sensação de impotência, mas também a tranquilidade por saber que a mãe estava confortável. Através do telefone chegavam fotografias que transmitiam serenidade. Para esta família, as videochamadas não eram uma solução. Por causa do Alzheimer, Iria ficava agitada. Maria Manuela teve a mãe no lar e antes a avó, que viveu até aos 105 anos. A proximidade com as equipas ajudou a lidar com a situação. “Não podíamos sequer aproximar-nos”, mas saber dos esforços dentro do lar apaziguava a dor. À família vai brevemente chegar um bebé, uma nova vida que traz consigo uma espécie de redenção. Afinal, para Manuela, os afetos são o motor da vida.

Luísa Mendes
Cinfães

“Ninguém estava preparado para uma coisa destas”. É assim que Luísa Mendes, 29 anos e auxiliar de serviços gerais, descreve o primeiro embate para conter o surto de Covid-19 no lar da Misericórdia de Cinfães. A maior parte dos seus colegas foi para casa. Duas pessoas ficaram a cuidar de 33 utentes até que, 24 horas depois, começasse a aparecer ajuda. “Ficámos bastante assustadas, tínhamos pessoas dependentes de nós. Durante a manhã fizemos higienes e demos pequenos almoços, de tarde chorei.” Luísa ficou 18 dias no lar. Optou por lá ficar porque a filha, de 9 anos, sofre de bronquite asmática. Quando foi para casa não encontrou a família. O marido e a filha saíram para que a quarentena se cumprisse com segurança. Ao saber que não estava infetada, chorou de emoção. Com o marido, foi até casa da sogra, onde estava a filha. “Mãe, és tu?”, perguntou Filipa com a voz embargada pelo choro. Abraçaram-se. De toda a experiência, Luísa retira ensinamentos. Aprendeu a ter maior responsabilidade no trabalho e a valorizar ainda mais a sua liberdade. Dos colegas e da Santa Casa diz nunca ter sentido que estava só. Pelo contrário, “senti-me orgulhosa por trabalhar aqui”.

Teresa Oliveira
Vila Nova de Foz Côa

Teresa Oliveira tem 85 anos e vive no lar da Misericórdia de Foz Côa há cerca de um ano. Teresinha, como é conhecida por todos, sentiu na pele o que é estar infetado com o novo coronavírus. Sem sintomas, o mais complicado era gerir ansiedade e dúvida. Podia “haver um problema sem darmos conta”. As saudades também pesaram. Não tem filhos, mas conta com uma mão cheia de sobrinhos com quem mantém ligações de afeto. “Custa não poder estar perto deles”, mas as visitas por marcação e com distanciamento amenizam a ausência dos beijos e abraços.  Confessa que não sentiu medo da doença. Religiosa, contou sempre com as orações de Santo António, Santa Rita de Cássia, São José etc. “As preces ajudaram e não foi pouco”. Os pedidos de ajuda estenderam-se aos pais, cuja memória mantém-se próxima através de uma fotografia na mesa de cabeceira. “À noite quando estou na cama, olho para eles e peço que me ajudem a vencer esta crise”. Teresa tem olhos azuis, “são olhos de quem te quer bem” e observaram durante semanas os esforços de trabalhadores e voluntários. “Estou muito grata porque todos, de forma incansável, quiseram ajudar”.

Carlos Freitas
Nordeste

Carlos Freitas, 42 anos, trabalha no centro de dia, mas esteve nove dias no lar de idosos da Misericórdia de Nordeste, nos Açores, para apoiar colegas e utentes durante o surto de Covid-19 naquela estrutura. Soube do primeiro caso quando se apresentou ao serviço. “A porta estava fechada e começou a ser montado aquele aparato todo”. De imediato Carlos começou a fazer diligências para entrar no lar. Não queria virar as costas à instituição “neste momento tão débil e difícil”, embora “o que tinha para oferecer era a minha boa vontade, o meu querer e um conhecimento profundo dos utentes e dos meus colegas, a confiança que eles depositam na minha pessoa”. Diz que foi “uma gota de água”, mas ao mesmo tempo confessa ter sido gratificante ver várias “gotinhas” unidas “para fazer face a todas as adversidades”. Carlos foi infetado com o novo coronavírus e durante mês e meio esteve num alojamento local. Não quis ir para casa para proteger a sua mulher, que foi doente oncológica. Quando finalmente testou negativo, foi assolado pelo receio de falhar. Não sabia como seria o regresso ao trabalho, mas bastaram quinze minutos. “Aquela nuvenzinha dissipou-se” e sentiu que estava enfim de volta à sua segunda casa.

Augusta Silva
Santo Tirso

Augusta tem 60 anos e trabalha na Santa Casa da Misericórdia de Santo Tirso há 34. Estava de férias quando foi confirmado o primeiro caso de Covid-19 no Lar Dra. Leonor Beleza. Apesar do medo, não quis “abandonar o barco”. Interrompeu as férias e apresentou-se ao serviço. Augusta esteve sempre a trabalhar numa ala do lar destinada aos casos positivos e não parava de desinfetar tudo o que pudesse representar risco para as suas colegas: camas, portas, puxadores, chão, paredes, janelas etc. Da sua família recebeu todo o apoio. Pelo marido e pela filha manteve-se atenta e cuidadosa para que a doença não chegasse a casa, onde só entrava depois da higiene feita e da roupa trocada. Para cuidar da mãe, com 85 anos, contou com o apoio de uma sobrinha. Do surto recorda o empenho de todos, o medo e a dor pela perda de alguns utentes. Pela capacidade para ultrapassar este desafio, Augusta e outras colegas vão fazer uma promessa a Santa Rita de Cássia, santa das causas impossíveis. Apesar de tudo, está nos planos agradecer pelo que correu bem.

Isabel Santos
Ovar

Isabel Santos tem 44 anos, é auxiliar de serviços gerais no lar de idosos da Misericórdia de Ovar. Durante o surto de Covid-19 que assolou a comunidade, Isabel integrou a primeira equipa que voluntariamente se enclausurou no lar para tentar proteger os idosos do novo coronavírus. Sobre a experiência, não hesita: “faria tudo de novo sem pensar duas vezes”. Apesar do esforço de todos, “colegas, chefia e as doutoras sempre connosco”, registaram-se casos positivos naquele lar e para Isabel este é o aspeto negativo que guarda na memória. Em contraponto, refere a união: “fomos sempre muito unidas, ajudávamos as colegas da noite, senti-me sempre apoiada, as doutoras andavam sempre prontas para nos ajudar e orientar”. O início não foi fácil, “custou um bocadinho, começámos a encaixar tudo e fomos melhorando com o passar dos dias, os idosos foram compreendendo”. Novas rotinas de trabalho, com desinfeções e equipamentos de proteção individual, obrigavam a um enorme esforço, mas sempre com atenção aos mais frágeis que lá estavam. “Aos idosos tentávamos fazer as vontades, apesar de termos muito trabalho, para não sentirem tanto a diferença”. Saber que por casa estava tudo bem ajudou e, ao fim de duas semanas, quando chegou a hora de alternar a equipa, o sentimento era de alguma tristeza “por sair e deixá-los, mas alegre por poder ir para casa e ver os meus”.

Rosa Mota
Melgaço

“Fiz 50 anos no dia 23 de abril, quando estava em isolamento.” Os sintomas da ajudante de lar começaram 20 dias antes, seguiu-se o teste positivo e um mês e meio em casa. Teriam sido dias de festa marcados por aniversário, Páscoa e Dia da Mãe. “Tinha dores no corpo, depois comecei a ter tosse ligeira e falta de apetite, fiquei dois ou três dias sem comer, só bebia água e chá.” Rosa fala sobre a tristeza que sentiu quando recebeu o resultado do exame. “Fiquei muito triste porque o meu filho na altura trabalhava aqui na UCC com pessoas frágeis e o meu marido teve um problema oncológico, chorei muito durante esse isolamento”. Também sofreu com a dificuldade das colegas que ficaram a trabalhar no lar de idosos da Misericórdia de Melgaço. “Custou muito não poder ajudar, sei que era uma fase complicada para elas, sem saber o que lhes podia acontecer. Fui falando com outras colegas em isolamento, estavam preocupadas como eu. Às vezes chorava uma de um lado, outra do outro.” Para Rosa foi “uma alegria” receber finalmente o resultado negativo. Regressar ao trabalho “foi estranho”, mas ao tempo considera que ter sido bem recebida. Ainda carrega consigo algum medo, especialmente de contagiar alguém.

Emília Almeida
Monção

Emília Almeida, 37 anos, é enfermeira no lar de idosos da Misericórdia de Monção há 15. Sobre a experiência do surto de Covid-19 é perentória: “não desejo isto a ninguém”. Conta que “perdeu a noção do tempo”.  Foi a única de três enfermeiras que permaneceu no lar, as colegas estavam grávidas e foram para casa. Depois vieram enfermeiros da unidade de cuidados continuados. A azáfama do plano de contingência roubava-lhe o tempo: separar positivos de negativos, controlar sinais vitais, ensinar as auxiliares a equipar-se, estabelecer circuitos de sujos e limpos etc. Mas para Emília, apesar desta agitação, o mais delicado era gerir as emoções, as suas e as dos outros. “Temos de transmitir que está tudo bem e controlado, mas no fundo não nos sentimos seguros”. Para proteger os utentes já massacrados pelas “notícias assustadoras, parecia que era morte certa para os idosos”, toda a equipa guardava os desabafos para os momentos em privado: “só se iam abaixo quando estávamos sozinhas, expunham os seus medos e ansiedades”. Foram dias complicados, marcados por muita responsabilidade, “medo de falhar” e ausência de pessoal, mas também por um trabalho “verdadeiramente em equipa, quase como família”.

 

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas

Ilustrações: Eunice Rosado