Longe de casa e da família há quase um ano, Oksana Hudz, 38 anos, e os dois filhos, Daniel e Vladslav, de 15 e 12 anos, deixaram Borshchiv, na Ucrânia, no início de março de 2022 e refugiaram-se em Almeirim, com o apoio da Misericórdia e do Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes (CLAIM). O núcleo familiar ficou completo, meses mais tarde, com a chegada de Oleg, recomeçando a sua vida num país seguro, de clima ameno e paisagens verdes, sem perder de vista o regresso ao país de origem. Um ano após o início do conflito, o VM faz o balanço do apoio prestado pelas Misericórdias, com exemplos de integração em Almeirim, Barcelos, Santo Tirso e outros pontos do país.

As primeiras famílias chegaram a Almeirim a 10 de março de 2022 e foram acolhidas por particulares e instituições como a Santa Casa, que disponibilizou alojamento e postos de trabalho, em resposta a um apelo local e da União das Misericórdias Portuguesas (UMP).

Oksana recorda a chegada a Portugal com um misto de emoções: “feliz por ter os filhos seguros” e triste por deixar a família [pais, irmão, marido] e os cães. O marido juntou-se meses mais tarde à família, após cruzar livremente a fronteira, devido a problemas cardíacos que o impedem de se alistar no exército. Na lavandaria, as colegas gabam-lhe a boa disposição e capacidade de trabalho. “Quando estamos aqui as duas a trabalhar rimo-nos imenso. You are always smilling [Estás sempre a sorrir]”, revela Vanda Mendes, responsável pelos serviços de lavandaria. Os idiomas confundem-se, com a ajuda de gestos, sorrisos e olhares cúmplices. São colegas, amigas e, mais do que isso: “ela diz que sou a mama (pronúncia inglesa) do trabalho”.

Helena Duarte, diretora técnica, relembra com nitidez o dia da sua chegada: “Chovia muito. Fartámo-nos de chorar. Foi muito intenso”. Nos dias anteriores, dedicara-se, com uma equipa de voluntários, a limpar e equipar cinco casas destinadas a acolher famílias fugidas da guerra. “Queríamos que abrissem a porta e sentissem amor e segurança porque tinham perdido tudo”, disse ao VM em março de 2022. O rosto de Oksana iluminou-se quando entrou na nova casa: “Everyday I think we need casa, trabalho. When I came to Santa Casa…so very happy”.

Um ano depois, mostra-se satisfeita com a estadia em Portugal. “I’m very happy trabalhar aqui, so good people. Aqui é a minha casa”. Não esconde, contudo, o sonho que acalenta no seu íntimo: “go to Ukraine”. O impasse é permanente: ficar ou partir. Mas a segurança dos filhos prevalece sobre tudo o resto. Enquanto espera e desespera, a mãe transmite-lhe coragem, do outro lado do telefone: “wait, maybe next year”.

O mais difícil de gerir, neste processo de adaptação, é a expetativa do regresso ao país de origem. Os planos são alterados vezes sem conta e os dias transformam-se em meses. Em Santo Tirso, Mariana e os quatro filhos chegaram a Portugal em março de 2022 e tinham como plano inicial regressar à Ucrânia em agosto desse ano. Depois dezembro. E agora protelam o regresso para o final de 2023. “É esta esperança e expetativa que os vai movendo”, revelou Susana Moura, coordenadora do Centro Comunitário de Geão, da Misericórdia de Santo Tirso.

Entre a incerteza e a esperança, as equipas responsáveis pelo acolhimento reinventam-se para adequar a sua intervenção às necessidades e expetativas das famílias. “Desde o primeiro dia, procurámos que sentissem que tinham aqui um porto seguro e o nosso apoio, respeitando as suas decisões e o ritmo de adaptação. Foi uma experiência de trabalho direta com eles, desde a preparação da casa, atribuição de alimentos, vestuário e apoio na integração escolar. Não deixa de ser um alento e um incentivo à manutenção deste nosso trabalho comunitário”, recordou Susana Moura, para quem a experiência tem sido intensa e gratificante.

Em Barcelos, o balanço feito pelo provedor em termos de integração é muito positivo, através do apoio ao nível do alojamento, integração no mercado de trabalho, creche/pré-escolar e ensino da língua. “Como é evidente todos gostaríamos que não houvesse guerra, mas o apoio prestado [junto de 38 pessoas] foi decisivo para que se autonomizassem como cidadãos de pleno direito na nossa sociedade”, revelou Nuno Reis.

Viktoriia foi das primeiras pessoas acolhidas, em meados de março, em resposta ao apelo lançado pela UMP, através da “Missão Ucrânia”. “Vivia numa zona que não era segura, perto de uma estação nuclear [Zaporizhia] e tive de fugir da minha cidade a 25 de fevereiro”, contou ao boletim da Santa Casa de Barcelos, em agosto de 2022. “Sonhava viver perto do oceano, num país com bom clima e abundante em espaços com natureza…Portugal é esse país”, justificou então. Meses após a chegada e adaptação à língua e cultura portuguesa, a mulher formada em matemática admitia a possibilidade de “encontrar uma nova vida e até viver por cá”.

Em fevereiro e março de 2022, as Misericórdias responderam ao apelo lançado pela UMP, autarquias e outras instituições da sociedade civil, oferecendo alojamento, alimentação, emprego e vagas em creche e pré-escolar. Em menos de um mês, o levantamento inicial feito pela UMP indicava a disponibilidade de 91 Misericórdias para colaborar na operação de acolhimento de emergência aos cidadãos ucranianos.

Neste processo, houve famílias que optaram por procurar cidades maiores, perto do litoral, ou até sair de Portugal, como revelam os números do Serviços de Estrangeiros e Fronteiras, anunciados a 6 de fevereiro de 2023 (pelo menos 1529 ucranianos que obtiveram proteção temporária devido à guerra, ou seja 2,6% do total, deixaram Portugal no último ano).

O relato de Ana Almeida, coordenadora do departamento de inovação e desenvolvimento da Misericórdia da Covilhã, permite compreender o contexto social e expetativas das famílias que chegaram à Cova da Beira e outras zonas do país. “Tiveram todo o apoio necessário na integração e articulação com serviços do Estado, mas preferiram, quase todas, cidades maiores, com mais serviços, oferta cultural, possibilidades de transportes e mobilidade. Algumas estiveram, no máximo, quatro meses e foram francas desde o início”.

O apoio prestado através do CLAIM, com gestão da Santa Casa da Covilhã, garantiu uma resposta robusta, integrada e transversal em áreas como a saúde, emprego e educação, mas, como alerta a socióloga, “as pessoas têm de ter liberdade para, neste momento difícil, encontrar um porto de abrigo, aqui ou noutro local. Não existem certezas nem ideias pré-concebidas. São vidas e cada um deve ter a sua liberdade de escolha”.

De coração dividido, a família de Oksana e Oleg Hudz, em Almeirim, prefere não fazer planos a longo prazo. Vive na esperança de acordar num mundo sem guerra e rever os familiares e os cães que deixou em Borshchiv, na Ucrânia. “Se a guerra stop today... chec chec (faz o gesto de arrumar as malas) and chau!”, diz-nos Oksana entre risos. De preferência, perto do verão para levar as amigas da Santa Casa a passear: “Vanda, Nela, Susana e Teresa”. Enquanto não vislumbra o regresso no horizonte, deixa-nos uma lição preciosa que lhe serve de consolo: “people are home. Aqui é a minha casa agora”.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas