As Misericórdias estiveram reunidas no primeiro encontro dedicado aos arquivos históricos e boas práticas de gestão, conservação e divulgação dos acervos documentais, a convite do Fundo Rainha Dona Leonor (FRDL). No seminário “Arquivos das Misericórdias – Organizar o passado para servir o futuro”, arquivistas, historiadores e representantes do setor frisaram a importância dos arquivos para a construção da “memória nacional” e da história da assistência e saúde em Portugal, considerando inadiável uma intervenção sistemática e integrada, que recorre a sinergias para suprir a escassez de quadros técnicos e de outros recursos no terreno.
Edmundo Martinho, provedor da Misericórdia de Lisboa, começou por dar as boas-vindas aos participantes reunidos no Convento de São Pedro de Alcântara, lembrando a responsabilidade das instituições na “preservação do património e da memória” coletiva. Empenhado na parceria com a UMP, que considera “permanente, mas exigente”, mostrou-se disponível para continuar a apoiar as Santas Casas através do FRDL. Manuel de Lemos, presidente da UMP, elogiou de seguida o trabalho feito por pessoas “que não se limitam a limpar papéis, mas sim a preservá-los” e reconheceu que “quem não cuida do seu passado, não cuida do seu futuro”.
Num momento em que imperam as “sociedades globalizadas e individualistas”, o académico Manuel Braga da Cruz sublinha a necessidade de reforçar os traços identitários que unem as populações e destaca o papel das Misericórdias neste processo de construção identitária. “Há uma memória diluída que convém tornar viva e atuante para o futuro. As Misericórdias podem ter um importante papel na preservação da memória nacional e na história da solidariedade”.
Para José Pacheco Pereira, historiador e bibliógrafo de terceira geração (o pai e o avô foram também colecionadores), a valorização deste património passa antes de mais por uma “propaganda de memória” que consiste em olhar para os fundos e “dar contexto aos papéis”, ou seja, organizar, inventariar e estudar a informação.
Os arquivos devem ser “legados vivos”, em diálogo com as instituições e diferentes públicos, e não “relicários” intocáveis, como frisou o responsável pelo Gabinete de Património Cultural da UMP, Mariano Cabaço. Os historiadores como Isabel dos Guimarães Sá agradecem o livre acesso a este enorme repositório nacional, sem o qual não teria sido possível publicar, nos últimos anos, “centenas de artigos científicos e meia dúzia de livros gerais”. “Mais importante do que a informação é o que fazemos com ela”, refere a investigadora da Universidade do Minho, que se dedica ao estudo da assistência em Portugal desde 1987.
Registar, recolher, tratar e divulgar a informação são ações fundamentais para a valorização destes documentos, como nos explica o diretor do arquivo histórico da Santa Casa de Lisboa, Francisco d’Orey (Ver Reportagem).
Independentemente de investimentos pontuais feitos ao nível da conservação, a vigilância, limpeza e observação permanente são essenciais.
Na mesa redonda dedicada às boas práticas de gestão de arquivos, a Misericórdia do Porto destacou outras medidas implementadas, desde 2013, para proteção do seu espólio, relacionadas com o controlo ambiental, videovigilância, utilização de estantes compactas e de um software de inventário (ATOM), criação de circuitos de leitura independentes das salas de depósito e de uma zona técnica para desinfestação (por anoxia). Maria Alice Azevedo, arquivista da Santa Casa do Porto, destacou ainda a criação de uma biblioteca especializada para dar apoio à investigação, com mais de 4 mil publicações, fruto de doações.
A realidade da maioria das Misericórdias é diferente, como alertaram alguns presentes na plateia. Muitas instituições não têm técnicos ou espaços vocacionados para os arquivos, tendo a documentação dispersa em espaços menos nobres das instituições, como sótão e caves.
A resposta, neste caso, pode passar pelo trabalho em rede, sugerem os oradores.
Na impossibilidade de contratar um corpo técnico qualificado para assumir esta função, os especialistas sugerem que as instituições recorram a parcerias com universidades, municípios, outras entidades, considerando ainda a possibilidade de mobilizar voluntários.
A própria Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), representada no seminário por Pedro Penteado, mostrou-se disponível para continuar a apoiar as Misericórdias, no âmbito de um protocolo formalizado entre a UMP e Ministério da Cultura, em 2017, que prevê o “apoio técnico nas áreas de conservação e restauro, avaliação e tratamento de acervos, formação e sensibilização de trabalhadores”. A integração em redes regionais de colaboração pode ainda trazer “ganhos efetivos para todos”.
Pedro Penteado, que também é docente da Universidade Nova de Lisboa, alertou ainda para a necessidade de tratar de forma rigorosa a informação produzida diariamente pelas instituições, que consta dos chamados “arquivos intermédios”.
Segundo o especialista, enquanto parte dessa documentação não é integrada no arquivo histórico, deve ser avaliada através de instrumentos como tabelas de seleção. A utilidade desta ferramenta prende-se ainda com a salvaguarda das instituições face às novas regulamentações do RGPD. “O artigo 89º do RGPD diz que a informação com interesse público, que conste de arquivos, não pode ser eliminada. Por isso as tabelas de seleção têm utilidade porque determinam o que deve ser guardado ou não”.
No final da manhã de reflexão, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) convidou os dirigentes e técnicos das 32 congéneres presentes para um almoço nas instalações, seguido de uma visita guiada ao arquivo histórico da SCML, igreja e museu de São Roque (Ver Reportagem).
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas