O espólio de paramentos da Misericórdia de Atouguia da Baleia, único no país pela aplicação de renda de bilros, voltou a sair à rua na Procissão dos Passos, com uma nova peça, o pluvial (ou capa de asperges), estreada pelo Cardeal Patriarca de Lisboa, a 26 de março. A introdução desta arte tradicional de Peniche nos panos litúrgicos remonta a 2012, quando a Santa Casa desafiou a atouguiense Luísa Chagas a rendilhar peças para as imagens dos santos, pendão, guião, frontaleiras do andor e outros paramentos.

Ligado à reativação da procissão em 2000, muitos anos antes de assumir a direção da instituição, o atual provedor foi um dos impulsionadores desta novidade, desafiando Luísa e outros conterrâneos a colaborar nas celebrações quaresmais com a sua arte e engenho.

“O embelezamento da procissão foi gradual e advém da generosidade da Dona Luísa, que vai aceitando os nossos desafios, e de outras pessoas, que oferecem tecidos, preparam as imagens e levam os andores. Envolvemos diferentes grupos da sociedade, desde a junta de freguesia, paróquia, escuteiros, filarmónica e os próprios anjinhos [crianças], da catequese. Estamos muito gratos pela ajuda de todas estas instituições e pessoas”, revelou ao VM.

Numa paróquia com 14 igrejas, são várias as manifestações de fé a decorrer durante o período quaresmal e Semana Santa. Esta, contudo, distingue-se pela valorização de uma arte com séculos de existência. A renda de bilros já foi inclusive representada na pintura de Josefa de Óbidos (1630-1684). Segundo o provedor, quando o conjunto sai à rua, no quinto domingo da Quaresma, produz um “efeito bonito e exuberante”, muito apreciado pela irmandade e pela população.

Aos 86 anos, Luísa Chagas dedica dias e noites ao ofício que aprendeu na infância. “Sento-me à janela, com vista para o largo, em frente à Igreja de Nossa Senhora, e nem dou pelo tempo a passar. Se puser um tacho ao lume já sei que vai queimar. Gosto muito disto. Não consigo dizer que não”, confidencia.

Com a juventude na voz e nas mãos, a rendilheira já tem projetos em mente para o futuro próximo. “Quero oferecer uma renda amarela para o altar-mor ". Ao que o provedor acrescenta, em tom de brincadeira: “Já lhe disse que tenho trabalho para si até aos 105. Tem de continuar a trabalhar porque isso rejuvenesce”. Luísa concorda rematando que “os netos querem que dure até aos 100 anos”.

Os olhos brilham enquanto descreve os seus trabalhos de costura: renda para revestir árvores, roupa para os netos e panos para os santos que a acompanham nas suas orações.

Enquanto os olhos e mãos não a atraiçoarem as rendas vão continuar a ser companheiras de todas as horas.

Para o provedor, este é um exemplo “de valorização de uma arte com muitos séculos, só possível com a generosidade de várias pessoas, como a D. Luísa Chagas”, que comprova o papel das Misericórdias na conservação de artes e ofícios. “Somos um caso especial por não ter atividade social, mas uma coisa positiva é ver que, sem grandes pretensões, conseguimos envolver as pessoas e fazer uma celebração muito bonita”, refere Ademar Marques.

Sem respostas sociais, a Misericórdia de Atouguia da Baleia assume-se hoje como guardiã de tradições locais e memória coletiva, participando em celebrações religiosas, na Quaresma e no dia de Nossa Senhora da Conceição, e associando-se às festas em honra de São Leonardo (6 de novembro), padroeiro da terra. A par destes acontecimentos anuais, disponibiliza a casa mortuária, na igreja, para velórios e cede o edifício onde funciona o centro de saúde.

Nalguns desses eventos, tem sido possível angariar fundos para requalificar o património da Santa Casa da Misericórdia de Atouguia da Baleia, primeiro a igreja e, em breve, o edifício do centro de saúde. Tudo graças à adesão e generosidade da população.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas

Fotografia: Cristina Leitão