“No outro dia, quando cheguei aqui, apercebi-me que a igreja, que estava velha e decadente, se tinha transformado num monumento. Isto é mais uma prova de que é possível fazer acontecer quando queremos e temos ajudas. Sem a Câmara não seria possível. Mas foi possível e está feito”, congratula-se Isabel Miguens, provedora da Santa Casa cascalense.
Em 14 meses, a obra avaliada em cerca de 1,4 milhões de euros permitiu requalificar edifícios e espaços interiores, assim como o património móvel (pintura, ourivesaria, paramentaria, escultura, mobiliário, etc.), que se encontrava disperso em várias salas da sede e igreja. “As pessoas perguntam onde tínhamos guardadas todas estas peças”, brinca a provedora.
O projeto de museologia, concebido pelo ateliê Saraiva + Associados, contextualiza o espólio que poucos conheciam. Objetos do culto e de procissões, como lanternas, turíbulos, paramentos e andores, telas representando a Paixão de Cristo, objetos utilizados no quotidiano da irmandade ao longo dos séculos, como a tábua do irmão do mês e as varas do provedor e dos mesários, imagens de Santos e outras peças que “atestam a riqueza da coleção da Misericórdia de Cascais”, conforme se lê num painel informativo.
A entrada no museu faz-se através do pátio que albergou o antigo hospital, a farmácia e a residência do “hospitaleiro”, onde podemos hoje ler, gravadas numa parede branca, as 14 obras de misericórdia, evocando a missão desta irmandade. Despojado, o espaço amplo conserva, na sua magnificência, uma árvore centenária, que é testemunha da passagem do tempo. A reflexão prossegue, a convite do Padre António Vieira. “Não há poder maior no mundo que o do tempo. Tudo sujeita, tudo muda, tudo acaba”, lê-se no final do corredor.
A visita segue pela sala dedicada à coleção de pintura, onde se destacam quatro tábuas do primitivo retábulo-mor da igreja, atribuídas a Cristóvão Vaz em 1590, e a bandeira da irmandade, representando a Nossa Senhora da Misericórdia.
Seguimos para a antiga sacristia da igreja, um dos elementos mais antigos do conjunto arquitetónico, que se presume ter sido erigida sobre a Ermida de Santo André, onde se celebrou culto nos anos que decorrem entre o terramoto e a construção do novo templo, em 1781. Inevitável não ficar deslumbrado com o teto em madeira, onde se destaca um medalhão central pintado com o brasão da Misericórdia, ladeado por motivos de estilo rococó.
Adiante, numa sala de apoio à sacristia, estão expostos objetos e alfaias litúrgicas (custódias, cálices etc.) que integram o tesouro da Misericórdia de Cascais. Enquanto observamos os objetos reluzentes, a provedora chama a atenção para um detalhe que passará despercebido à maioria dos visitantes. Uma pia de lavar as mãos, em mármore rosa, encimada por uma tina encastrada na parede, que revela uma das antigas funções deste espaço mais reservado.
Em breve, o público poderá percorrer estas salas e desvendar os tesouros que nelas se encerram. A abertura oficial está prevista para o início de junho. “Estamos a devolver este património à comunidade e só assim faz sentido. Isto não é nosso, é uma casa onde estamos temporariamente, a fazer o melhor que podemos e sabemos. A nossa responsabilidade é transmitir este legado da melhor maneira possível”, referiu Isabel Miguens.
Para o presidente da autarquia, Carlos Carreiras, a recuperação deste património é um “momento de muita alegria para o concelho” por permitir “respeitar o passado e projetar Cascais no futuro”, ao lado de instituições como a Santa Casa, “parceira de todas as horas”.
No dia em que inaugurou o museu, a 10 de abril, o acervo documental da Santa Casa ficou disponível para consulta pública online no Arquivo Histórico Digital de Cascais. Além do fundo da Misericórdia de Cascais (1428-2007), depositado no arquivo municipal desde abril de 2017, o espólio comporta ainda nove fundos de outras irmandades, relevantes para o estudo da história da religião e assistência no concelho.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas