Os espaços culturais da Santa Casa de Coimbra estão encerrados ao público por causa do confinamento, mas continua-se a trabalhar na investigação histórica, cultural e patrimonial, prosseguindo, entre outras atividades, com a digitalização do arquivo que, para a historiadora Maria José Azevedo Santos, é muito valioso. “Todo e qualquer papel ou pergaminho que ele guarda permite o respetivo estudo, seja de que natureza for”, sublinha.
O primeiro responsável pelo arquivo da Misericórdia de Coimbra foi Armando Carneiro da Silva, que, como recorda Maria José Azevedo Santos, “era um homem de cultura, de memórias e um estudioso de Coimbra, também irmão da Santa Casa”. “Nessa qualidade, começou, de facto, não só a proteger este património de valor incalculável, como também a fazer pequenos trabalhos relacionados”, observa a especialista em Paleografia e Diplomacia, atual colaboradora da Misericórdia e que, entre 2003 e 2011, desempenhou o cargo de diretora do Arquivo da Universidade de Coimbra.
“Mais tarde, com o provedor Doutor Aníbal Pinto de Castro, o arquivo começou a ser quase uma prioridade, porque as Misericórdias são centros de memórias e, sobretudo, centros de atividade social e de bem para o próximo”, continua esta responsável, que em 2000 coordenou cientificamente a publicação “Memórias da Misericórdia de Coimbra – Documentação e Arte”.
Aludindo ao antigo diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC) e autor da obra “O Regicídio de 1908 – Uma Lenta Agonia da História”, publicada em 2008, evocativa do centenário das mortes de D. Carlos e do príncipe herdeiro Luís Filipe (assassinados em 1 de fevereiro de 1908), Maria José Azevedo Santos confirma que, enquanto provedor da Misericórdia, Aníbal Pinto de Castro “pensou no maior cuidado que o arquivo mereceria”.
Sobre o trabalho desenvolvido ao longo dos anos junto do arquivo, a investigadora destaca a “colaboração partilhada” com a historiadora Maria Antónia Lopes, cuja tese de doutoramento, intitulada “Pobreza, assistência e controlo social em Coimbra (1750-1850)”, foi defendida e publicada em 2000.
Maria José Azevedo Santos conta que essa investigação académica se baseou em múltiplos documentos do arquivo da Santa Casa, principalmente “todos os pedidos dos pobres, daqueles mais pobres nos séculos XVIII e XIX”, a exemplo das mulheres abandonadas, viúvas e solteiras sem proteção e sem profissão, que – não sabendo escrever, solicitavam a outros que o fizessem – declaravam “não ter nada”.
“Era uma pobreza profunda, sobretudo uma pobreza no feminino”, nota a historiadora, considerando que “esses documentos são aqueles que mais tocam e dão conta da pobreza em Coimbra, nos séculos XVIII e XIX, os quais são muito chocantes, embora a pobreza seja de todos os tempos”. “São as petições de esmola, que vão do simples agasalho aos leites de burra para o tratamento da fraqueza e de várias doenças”, elucida.
Com uma carreira de investigação em torno da escrita, Maria José Azevedo Santos mostra “muita sensibilidade pela memória que está em muitos objetos da palavra, no seu sentido mais amplo”, daí o seu interesse pelos documentos escritos produzidos e associados à Misericórdia de Coimbra desde a sua criação.
Atentos à evolução da grafia portuguesa ao longo de cinco séculos, os responsáveis pelo arquivo da Misericórdia conservam o documento mais antigo, datado de 1449 e que consiste numa carta de emprazamento escrita no ano da morte de D. Pedro, 1.º Duque de Coimbra, durante o reinado de D. Afonso, cognominado de “O Africano”.
“Esta casa, pela sua natureza, ao longo dos séculos, produziu milhares de documentos”, releva Maria José Azevedo Santos, mencionando que “há documentação recebida de vários centros de produção ou de chancelarias: documentos régios, episcopais, pontifícios e documentos de outras Misericórdias”, além dos provenientes das relações com os poderes concelhios (ou locais) e centrais.
A Misericórdia também protegia os peregrinos que iam para Santiago da Galiza, como na altura se dizia. No seu arquivo, deparamos com muitas “cartas de segurança ou de passagem” e outras formas de proteção, incluindo os donativos de dinheiro.
Maria José Azevedo Santos destaca ainda o interesse dos “livros, riquíssimos, sobre o que era consumido pelo Colégio de São Caetano, registando o que davam aos pobres”, tendo em conta a diversidade do “celeiro da Santa Casa”. “São, na maioria dos casos, livrinhos de contabilidade, de natureza administrativa, que aguardam (também eles) o estudo e a investigação”
Voz das Misericórdias, Vitalino José Santos