Guardada a sete chaves está uma pena com aparo em ouro que ajuda a contar a história da Santa Casa da Misericórdia da Covilhã

Guardado a sete chaves, num cofre que pesa toneladas e que só é aberto quando há passagem de testemunho na Misericórdia da Covilhã, existe um tesouro.

Trata-se de uma pena, de aparo em ouro, com uma verdadeira pena de animal, que parece de pombo. Já não é branca, tem tons rosa, e está marcada pelo tempo, mas nos finais do século XIX, terá feito um brilharete quando o rei D. Carlos I e a rainha D. Amélia a utilizaram para firmar o auto comemorativo do lançamento da primeira pedra do hospital, que a Misericórdia iria construir no Convento de Santo António.

Era o dia 7 de setembro de 1891. O rei D. Carlos I e a rainha D. Amélia estavam de visita à Covilhã para inaugurarem a linha de caminho-de-ferro da Beira Baixa. A cidade engalanou-se para receber a visita real e a Santa Casa da Misericórdia da Covilhã aproveitou a presença de suas majestades para assinalar o arranque da obra do hospital, que teria o nome da Rainha e seria construído em terrenos cedidos pela câmara municipal, para esse propósito.

O auto comemorativo foi firmado e o original está guardado na Misericórdia da Covilhã onde são visíveis as assinaturas de D. Amélia Rainha e El Rei D. Carlos I, feitas com a pena que o neto do seu proprietário, António José Oleiro Morais Alçada, doou à Santa Casa a 23 de junho de 1990 com a condição de nunca sair das instalações da instituição para exposições ou outros atos.

E nunca saiu. Aliás, o cofre só é aberto quando muda a mesa administrativa, e é passado o segredo do cofre de provedor para provedor, ou em casos excecionais devidamente autorizados e registados em ata. E de estar fechado há seis anos, nem foi possível abrir no dia da nossa reportagem.

O que não foi cumprido foi a construção do hospital no Convento de Santo António. “Fez-se tudo: pediu-se autorização aos reis para o hospital ter o nome de Rainha D. Amélia, nós temos o projeto, as plantas originais, o caderno de encargos, a memória descritiva…” explica Liliana Gouveia, técnica de arquivo na Misericórdia, mas o hospital nunca chegou a ser construído naquele local. “Ficava longe da cidade e os custos com a recuperação do imóvel eram elevados para a altura, além dos custos com a manutenção.”

Com o abandono do projeto firmado pelos reis, no Convento de Santo António, onde hoje se encontra a reitoria da Universidade da Beira Interior, a Misericórdia decide edificar o novo hospital no Alto de Santa Cruz, dando assim cumprimento a uma das condições impostas pelas Confrarias Nossa Senhora de Vera Cruz e de S. Sebastião, quando doaram à Santa Casa a capela do calvário e os terrenos envolventes, já no início do século XX.

O hospital é construído e a Misericórdia ganha um dos seus mais imponentes monumentos: a capela do Calvário, ou capela de Santa Cruz, de onde sobressai uma abundante talha dourada a iluminar um teto com 30 telas que relatam, pelo pincel de vários artistas e ao longo de vários séculos, (do sec. XVII ao sec. XX), a vida de Cristo.

A entrada triunfal em Jerusalém, o batismo de Cristo, o sermão da montanha, o julgamento perante Pilatos, são alguns dos episódios, mas há também quadros de algumas das principais personagens, como os quatro Evangelistas: S. Marcos, S. Lucas, S. Mateus e a única tela que já não existe e interrompe a leitura do teto, e que seria de S. João Evangelista. Em comum, todos têm a pena na mão.

Além da pintura e da talha dourada, há outro elemento que impressiona nesta capela. Trata-se da imagem central de Cristo crucificado, quase em tamanho real, parecendo até desproporcional em relação ao altar-mor do majestoso templo. Do lado direito, Nossa Senhora, do lado esquerdo, S. João Evangelista.

A imagem de S. Francisco, representado com uma caveira numa posição invertida, sem que haja uma explicação aparentemente lógica para esta caveira ao contrário, é outro dos mistérios da capela que foi mandada construir pelo infante D. Henrique, 1.º senhorio da Covilhã, que a recebeu do pai, D. João I, após a conquista de Ceuta.

A capela foi, mais tarde, reconstruída pelo Infante D. Luís, filho de D. Manuel, também Senhor da Covilhã, a quem está associado outro mistério: o mistério da relíquia do santo lenho que o Infante doou à capela.

Reza a lenda, que essa relíquia foi roubada da capela, que se encontra fora das muralhas da Covilhã. Mas a população saiu em perseguição dos ladrões, que a esconderam numa árvore, onde começou a brilhar tanto, tanto, que foi encontrada e levada para Santa Maria, onde estaria mais protegida, dentro das muralhas. Hoje, é uma das principais peças do museu municipal de arte sacra da Covilhã.

O espólio da Misericórdia da Covilhã não fica por aqui. É ainda composto pela igreja, datada de 1601, e pelo salão nobre da instituição, onde se destaca um cálice com uma custódia, em prata, datado do século XVI. Além da antiguidade, este cálice é invulgar por ter a custódia associada. A sua origem é desconhecida, como acontece com grande parte do património que foi doado à Misericórdia e não foi registado, ficando por desvendar um importante pedaço da história. Uma pena!

Voz das Misericórdias, Paula Brito