Em declarações ao VM, a diretora do museu revelou que o ponto de partida deste trabalho é a “grande coleção de relíquias e relicários do museu e igreja de São Roque”, constituída por 265 relicários e mais de 500 relíquias de santos, dos séculos XIV ao XVIII.
Partindo do conhecimento e divulgação deste espólio, pretende-se estudar e compreender uma realidade ainda pouco conhecida no panorama artístico nacional, em múltiplas vertentes, desde a origem, produção e encomenda de relicários a práticas sociais e religiosas associadas a estes objetos artísticos e de culto. “No fundo, fazer pontos de ligação com o universo dos relicários a nível nacional. Haverá certamente relicários no país, com grande interesse, que não estão estudados e esta é uma oportunidade de diálogo entre todos”, resumiu Teresa Morna.
Neste vasto universo, estão as Misericórdias, paróquias, autarquias, museus e outras entidades com quem a Santa Casa de Lisboa se pretende associar para aprofundar o conhecimento sobre o tema e reunir numa base de dados, criada para o efeito, informação sobre as tipologias, naturezas e proveniências das relíquias e relicários dispersos pelo país.
A UMP foi convidada a participar neste exercício de diálogo e mediação de saberes, no âmbito do projeto de inventário em curso desenvolvido pelo Gabinete de Património Cultural (GPC). “Vamos ajudar a explorar a origem das relíquias nas Misericórdias, perceber se houve algum tipo de culto e dimensão curativa associada às relíquias e aos relicários. Não descurando a identificação e estudo das peças enquanto objeto artístico e espiritual, a abordagem é mais ambiciosa e pretende olhar a dinâmica afetiva, proveniência e influência do relicário na vida das pessoas que o veneraram”, adiantou Mariano Cabaço, responsável do GPC.
Num universo de 120 Misericórdias já inventariadas pela equipa do GPC, foram identificados até ao momento cerca de 90 relicários, datados sobretudo do século XVII, período em que se “dá a expansão do culto das relíquias”.
Segundo Mariano Cabaço, a origem das peças é diversa, mas resulta sobretudo de legados testamentários ou doações em vida de “nobres, com lugares de relevo no reino, que transportaram uma relíquia e a doaram à Misericórdia da terra. Resultavam, como tal, de lógicas de afirmação de poder local. Em casos menos frequentes, terão vindo à posse das Misericórdias por via dos conventos, aquando da extinção das ordens religiosas”.
A devoção das relíquias não é prática comum nas igrejas das Misericórdias. Acontecia sobretudo “nas igrejas matrizes ou sés patriarcais”. O responsável do GPC indica, contudo, uma exceção conhecida. “Tirando o Santo Lenho [pedaço da cruz de Cristo], que muitas Misericórdias têm e que era de uso comum nas procissões da Semana Santa, outras relíquias não foram referenciadas em atos litúrgicos das Misericórdias”.
Mas, como refere, estamos perante uma “oportunidade de aprendizagem, reflexão e estudo para podermos avançar no conhecimento desta área”. Por isso, no decorrer do projeto poderão surgir outras evidências que comprovem, ou não, a presença de relíquias e relicários na prática litúrgica das Misericórdias.
No volume 5 da coleção “Portugaliae Monumenta Misericordiarum”, encontramos referências sobre o papel das Misericórdias enquanto “importantes elementos difusores do culto”, tomando como exemplo a “veneração das relíquias que algumas albergavam, como sucedia com o santo lenho em Proença-a-Nova” (Abreu, Laurinda; Paiva, José Pedro; 2006, p. 21).
Para simbolizar a passagem de testemunho, há ainda vários compromissos, de que são exemplo as versões de 1577 e 1618 da Misericórdia de Lisboa, que referem a transmissão das relíquias como parte do ritual da tomada de posse, onde se incluía ainda a entrega das chaves, livro das atas e livro de inventário da instituição. “Tomado o juramento, o provedor que acabou entregarà as quatro chaves do braço de S. Anna e mais reliquias ao provedor novamente elleito, para depois as entregar aos irmãos que as hão-de ter”, lê-se no capítulo sexto do Compromisso de 1618.
Objetos de arte e devoção, as relíquias e relicários refletem o tempo em que foram criadas, adquiridas, doadas e veneradas pela população. Contam histórias sobre os santos que representam, os locais onde estão guardados e as pessoas que lhes prestam culto. Refletem as relações de poder, movimentos sociais, manifestações de culto e correntes artísticas e são, por isso, objeto de interesse e estudo para investigadores das mais diversas áreas.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas