Cerca de 120 pessoas estiveram em Coimbra, no Dia do Património das Misericórdias, para valorizar a memória e identidade destas instituições, numa edição organizada pela União das Misericórdias Portuguesas (UMP) com a Santa Casa conimbricense, que bateu recordes de participação desde a sua criação, em 2010.

Após 20 eventos descentralizados (12 Dias do Património e oito Jornadas de Museologia), as Misericórdias partilharam boas práticas e desafios na gestão deste património, num contexto de escassez de recursos, e reconheceram a importância de todos os que contribuem para a causa da cultura nas Misericórdias: técnicos, dirigentes, políticos, investigadores e parceiros.

A todos eles, “os que decidem, trabalham e usufruem do património das Misericórdias”, o presidente da UMP deixou uma palavra de incentivo e reconhecimento, na abertura dos trabalhos. “A realidade que a gestão patrimonial das Misericórdias tem demonstrado surpreende pela sensibilidade e empenho que os dirigentes e técnicos aportam a este setor, sabendo nós que estas instituições estão diariamente confrontadas com verdadeiros desafios nas suas atividades da área social e da saúde. Por isso, são merecedoras de um justo aplauso”, constatou Manuel de Lemos, numa intervenção onde anunciou a continuidade do Fundo Rainha Dona Leonor em 2024.

Dando como exemplo o edifício que acolheu este evento – o antigo Colégio da Sapiência (século XVI), que funcionou como Colégio dos Órfãos até 1966 e acolhe hoje a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e museu da Santa Casa – o provedor anfitrião lançou como mote para o debate “a obrigação de preservar o património, prestar tributo a este legado e transmiti-lo às gerações futuras”. José Manuel Vieira admitiu, contudo, que o “drama é, muitas vezes, como intervir, porque os apoios são sempre escassos”.

Para a secretária de Estado da Cultura, Isabel Cordeiro, as 20 edições sobre o património e museologia, organizadas desde 2010, vêm comprovar o “papel da UMP na preservação desta memória coletiva, na construção de bases sólidas e definição de programas de futuro”, assim como o “esforço colossal de produção de conhecimento” através da inventariação do património móvel de 152 Misericórdias e 40 mil peças, pelo Gabinete de Património Cultural (GPC) da União.  

Segundo o responsável do GPC, Mariano Cabaço, este programa de inventário tem sido a “base de todo o trabalho”, referindo-se aos projetos de musealização e de preservação do património das Misericórdias, desenvolvidos nos últimos anos. Fazendo uma retrospetiva dos projetos em curso, destacou ainda o projeto Reliquarium, de estudo e inventariação de relíquias, com a Santa Casa de Lisboa e a Universidade Nova de Lisboa, o museu virtual das Misericórdias, a criação de uma biblioteca especializada em Misericórdias e a gestão e risco de património em catástrofes.

A experiência partilhada neste encontro pelas Misericórdias de Montemor-o-Novo, Alcanede, Monforte, Murça e Tavira reflete a sensibilidade, criatividade e empenho dos técnicos e dirigentes na valorização do património das instituições e memória coletiva das comunidades.

Em Alcanede, as pessoas são o foco do projeto ‘100 Memórias e Estórias’ que resgata os jovens e idosos da solidão e vulnerabilidade social, através de oficinas e recolha de tradições de oito aldeias, nas freguesias de Alcanede, Fráguas e Gançaria, para a criação de experiências turísticas e culturais.

A memória dos arquivos esteve em destaque no testemunho de Montemor-o-Novo, onde o cuidado com a preservação deste espólio remonta ao século XVII, com a encomenda de estantes em 1629, para acondicionar 170 livros relativos ao funcionamento da instituição e do hospital. Segundo a provedora Paula Rosado, a atenção dada pelas anteriores direções garantiu “a preservação do espólio até hoje, com séries documentais praticamente sem lacunas”, a que se soma o depósito no arquivo municipal, em 2019, para dar continuidade a este trabalho. “O arquivo representa uma fonte importante de estudo da Misericórdia e do hospital, para conhecer a evolução do cuidado aos pobres e doentes, os processos eleitorais, gestão do património, relação com o clero e sociedade civil. Não apenas para o estudo da assistência, mas da própria região e da forma como o tecido social se organizava”, reconheceu.

A parceria formalizada em 2006 entre a autarquia e a Santa Casa de Monforte está também na génese de um projeto de restauro e criação de um centro para valorização de um conjunto azulejar proveniente da igreja do antigo convento do Bom Jesus, que estava em 59 caixotes de madeira à guarda da Misericórdia. A inauguração deste espaço está prevista para o final de setembro, segundo o arqueólogo do município Sérgio Batista.

Preservar e abrir os arquivos aos investigadores é essencial para conhecer a história das Misericórdias, conforme frisou a historiadora Maria Antónia Lopes, numa apresentação sobre a assistência aos presos na Misericordia de Coimbra. Contudo, alertou que essa história deve ser contada não apenas com recurso a obras de arte, mas a todo o património funcional que reflete a sua ação, “como os panelões para levar comida aos presos e o material dos hospitais”. Considerou, por isso, que “núcleos circunscritos a arte sacra transmitem uma informação errónea, deturpando o que foram as instituições cuja memória preservam e ensinam”.

Na despedida, o bispo de Coimbra, Virgílio Antunes, lembrou que “todos os patrimónios devem estar ao serviço das pessoas” e que o “sentido da história e da identidade é muito importante para evitar certas crises que vivemos no presente”.

Deixando o convite para as próximas edições, em Évora (Dia do Património) e Seia (Jornadas de Museologia), José Silveira, responsável do Secretariado Nacional da UMP pelo património, valorizou a mobilização em torno destes eventos e desafiou todos os presentes a prosseguir este percurso de “afirmação da identidade e projeção destes valores nas gerações vindouras”.

 

Ana Cargaleiro de Freitas, Voz das Misericórdias