O figurado em barro é património da cidade e foi classificado em 2017 como Património Cultural Imaterial pela UNESCO. Para valorizar ainda mais esta arte popular, a Misericórdia local quer dar a conhecer a coleção de 1132 peças, doada em vida por um benemérito.

Foto capa: Matança, Irmãs Flores, Coleção Misericórdia de Estremoz

Os bonecos de Estremoz nascem da terra que homens e mulheres aprenderam a modelar desde tempos imemoriais. Figuras toscas de barro, pintado a várias cores, representam a região, a comunidade e as artesãs que lhes deram vida e ainda hoje as devolvem à cidade num gesto de eterno retorno. Para perpetuar essa forma de arte popular, classificada em dezembro de 2017 como Património Cultural Imaterial pela UNESCO, a Misericórdia de Estremoz está empenhada na valorização de uma coleção de 1132 figuras, doada em vida pelo padre Mário Aparício Pereira, através da criação de um núcleo museológico no centro da cidade.

Homenageando o saber fazer das mulheres que ousaram, pela primeira vez no século XVII, modelar um santo da sua devoção para ter em casa, o clérigo de Vila Viçosa – professor e capelão da Santa Casa calipolense -, percorreu as olarias da região, durante mais de três décadas, para reunir peças de todos os artesãos que trabalharam esta técnica na segunda metade do século XX.

“Uma coleção fantástica”, resume o diretor do museu municipal, Hugo Guerreiro (ver entrevista), que colaborou na inventariação e transporte das peças. “O padre Mário Aparício Pereira já tinha consciência do núcleo base do figurado de Estremoz [90 figuras que vão do figurado religioso ao profano] e queria ter uma de cada artesão. Quase que conseguiu”.

Desse esforço resultou um espólio único no país, não apenas em dimensão e variedade, mas também a nível cronológico, colmatando uma lacuna existente nos museus nacionais: “esta é das maiores coleções do país, certamente a maior deste período (anos 1970 a início de 2000)”.

Presépio de Altar, Irmãs Flores, Coleção Misericórdia de Estremoz

Os grandes temas da barrística de Estremoz, que vão desde as cenas do mundo rural e urbano às figuras religiosas, estão representados na coleção de 1132 peças onde se incluem 310 obras das Irmãs Flores, 226 de José Moreira (1926-1991) e outras dezenas dos Irmãos Ginja, Fátima Estróia, Maria Luísa da Conceição, entre outros. “O padre Mário era muito boa pessoa, gostava de nos visitar e sentava-se numa cadeira a ver-nos trabalhar. Nos anos 1990, ia todas as semanas a nossa casa e levava o que havia de novo”, conta Maria Inácia, uma das Irmãs Flores, enquanto estica o barro sobre a bancada de mármore. 

Os bonecos erguem-se da terra, ganham pernas, tronco, são vestidos, voltam a secar, e só horas mais tarde vão ao forno. Um processo moroso, de muita paciência, nem sempre valorizado pela comunidade de outrora, por se tratar de uma curiosidade ou arte menor, assegurada por mulheres, num período em que a condição feminina era desvalorizada.

Hoje, como há 300 anos, as mulheres – embora já não sejam as únicas a modelar bonecos - assumem papel de destaque nesta arte nascida do povo e para o povo, que agora chega ao mundo inteiro através de figuras embaixadoras como “A Primavera” ou o “O Amor é Cego”.

Amor é Cego, Fátima Estróia

Até o olhar menos treinado consegue identificar a figura de olhos vendados, alegoria do amor incondicional, que repousa inacabada sobre a mesa de pedra das Irmãs Flores. “Esta peça do ‘Amor é Cego’ está a secar desde ontem. Depois de a água evaporar vai ao forno a coser, é pintada e leva verniz”, explica Maria Inácia Fonseca, revelando a peça coberta por um pano. Na bancada ao lado, Perpétua Fonseca, irmã mais nova de Inácia, mistura as tintas que vão cobrir o manto da Rainha Santa Isabel. “Temos as tintas em pó, azul, vermelho, amarelo, e depois misturamos com cola para aderir mais facilmente à peça”, conta enquanto se dirige ao armário dos pigmentos.

Renovação geracional
No ateliê das Irmãs Flores, o barro é modelado segundo técnicas ancestrais que, à semelhança de outras oficinas, são transmitidas de geração em geração. Começou pela família de Mariano da Conceição e Sabina da Conceição Santos, depois da ameaça de extinção na década de 1920, que por sua vez transmitiu o legado às Irmãs Flores, Fátima Estróia e Isabel Bento.

Nossa Senhora da Misericórdia, Irmãs Flores, Encomenda UMP

Os ensinamentos da mestre da Olaria Alfacinha são honrados todos os dias e ainda hoje as irmãs barristas recordam as palavras de Sabina Santos antes de se reformar: “Não podem deixar de trabalhar. A continuação dos bonecos são vocês. Vocês têm tudo, só precisam das mãos, um bocado de barro e um bocado de pau”, recorda Perpétua Fonseca.

Hoje Perpétua e Inácia fazem o mesmo com o sobrinho, Ricardo Fonseca, ajudando a cumprir um dos objetivos da autarquia, no âmbito da candidatura à UNESCO: criar condições para o surgimento de novos barristas. O desenvolvimento de um curso de olaria e figurado, em parceria com o IEFP, insere-se nesta estratégia de salvaguarda e valorização, iniciada em 2012. “O objetivo era promover a renovação geracional dos artesãos para perpetuar a arte, não era esgotar o boneco nas lojas”, justifica Hugo Guerreiro, responsável técnico da candidatura. 

Gradualmente essa renovação vai acontecendo, mas não ao ritmo exigido pela procura. “Estivemos para fechar portas porque não conseguíamos trabalhar com tantos visitantes. A nossa lista de encomendas tem meses de espera”, desabafam as Irmãs Flores. ?

Património da cidade
Face ao incremento de turismo e renovação de interesse pelo figurado, o provedor Miguel Raimundo acredita que a coleção do padre Mário Aparício será mais um “motivo de atração turística e cultural da cidade”. A vontade de colocar o espólio à vista de estremocenses e turistas é, por isso, muita. “Não obstante ter sido doado à Misericórdia, este é um património da cidade que gostaríamos de expor ao público”. 

Depois de inventariado, acondicionado e transportado desde Vila Viçosa, o figurado está quase pronto a integrar um núcleo museológico. Falta apenas o espaço, que está neste momento ocupado por um polo da Universidade de Évora, ao abrigo de um protocolo celebrado em 1993. Trata-se do Convento de São João da Penitência, mais conhecido por Convento das Maltezas, que delimita a norte a praça Rossio Marquês de Pombal.

“O espaço com dimensão suficiente para expor os bonecos e outras peças do espólio é uma sala conhecida por Refeitório dos Frades, na posse da universidade. Infelizmente, da parte dos responsáveis do polo não houve recetividade à cedência da sala”, lamenta o provedor, que aguarda resposta da reitoria da universidade, desde início de 2018. 

Enquanto não se chega a acordo, as peças vão continuar guardadas num local seguro, aguardando a divulgação junto do público. Depois de 300 anos à espera da merecida distinção – primeiro figurado do mundo com a marca UNESCO – os estremocenses aguardam mais um acontecimento único que vai ajudar a projetar a cidade e a região além-fronteiras.

Já dizia Fernando Namora: “Homem, até o barro tem poesia!”.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas