Segundo o provedor Francisco Figueira, o projeto do museu resulta da conjugação de três fatores: “A consciência da responsabilidade por termos uma história com mais de 523 anos, a necessidade de proteger e partilhar este património com outras entidades e público em geral e a obrigação de transmitirmos o que são as Santas Casas de Misericórdia”.
Partindo da reabilitação da igreja, que integra a visita ao museu, a Mesa Administrativa decidiu valorizar ainda mais esta “joia do barroco” e restante património, disponibilizando ao público seis salas expositivas que contam a história da instituição e a sua relação com a comunidade.
A visita é enriquecida com a informação facultada nos painéis interativos disponíveis nas salas e na aplicação informática criada para o efeito, que permite navegar 360 graus no interior da igreja, ver e ouvir descrições sobre todas as peças e conhecer as diferentes fases de restauro.
“Cada experiência é única, à medida dos interesses e disponibilidade dos visitantes. A mesma pessoa pode fazer uma visita de cinco minutos ou de um dia inteiro e conhecer com maior ou menor profundidade as peças e a história da instituição”, explica o historiador José Calado, responsável pelo estudo do arquivo da Santa Casa e produção de conteúdos expositivos.
Acedemos ao museu por um corredor estreito onde está inscrita uma breve cronologia da história da Misericórdia. “Isto era a casa de um sapateiro, tinha uma chaminé ali ao fundo”, conta o provedor, enquanto mostra uma fotografia a preto e branco que o comprova.
A história continua a escrever-se com outros protagonistas, mantendo-se a preocupação do registo de memórias. “Falamos da transmissão de uma história e de um conjunto de informação pelas vias atuais para chegar a todos os públicos”, refere Francisco Figueira.
A primeira sala é dedicada às obras de misericórdia, espirituais e corporais, e à atividade hospitalar e farmacêutica, com enorme preponderância até ao 25 de Abril. Neste espaço, José Calado destaca um aspeto original e “ligação improvável”, entre o “fazer misericórdia” e a benemerência que tem contribuído para assegurar a assistência ao longo dos séculos. “Estas peças representam a importância que os beneméritos tiveram para a Misericórdia e fazem alusão aos próprios assistidos, que foram utentes no lar e que, apesar do pouco que tinham, doaram os seus instrumentos de trabalho [carpinteiro e amolador]”, detalha.
Numa sala polivalente, disponível para eventos da comunidade, destaque para uma exposição temporária sobre o património imaterial do Alentejo, que reúne bonecos de Estremoz, tapetes de Arraiolos, chocalhos de Alcáçovas, olaria do Redondo e também uma homenagem ao cante alentejano. Esta é apenas uma das exposições temporárias a marcar a programação para 2022, entre outras tantas previstas, com o objetivo de diversificar a oferta cultural do museu e da cidade.
A visita prossegue na antiga sacristia, que acolhe agora três telas, com a representação da Sagrada Família e de São Tomás de Aquino, protetor dos livros e arquivistas, em alusão ao vasto arquivo histórico da Santa Casa. Num espaço contíguo, que dá acesso à antiga sede, está em exposição uma coleção temporária de ourivesaria, designada de “tesouro, pelo seu valor simbólico”.
Adiante somos surpreendidos com uma parede coberta de registos de santos, reunidos ao longo de três gerações por uma família eborense. Sem descendentes, a matriarca da família decidiu doar o espólio à Misericórdia – constituído por mais de uma centena de registos –, quando soube que estava prestes a nascer um museu em Évora. “Felizmente, os museus continuam a despertar o interesse das pessoas”, congratula-se o historiador que nos guia pelo espaço.
Chegamos por fim à “sala mais importante do museu”, dedicada ao culto. O motivo é o autor de duas telas – Adoração dos Pastores e Adoração dos Reis Magos – André Reinoso, um dos pintores de maior destaque da primeira geração do barroco em Portugal, com obra produzida entre 1610 e 1641. Esta sala serve de antecâmara à das bandeiras processionais, onde podem ser contemplados os passos da Paixão de Cristo, que integravam a Procissão das Endoenças.
A visita tem o seu apogeu no coro alto da igreja, o “único local onde se tem uma perspetiva panorâmica desta joia do barroco, que para muitos especialistas é uma das peças mais importantes deste período em Portugal”, constituído pelo conjunto de telas barrocas que retratam as obras de misericórdia, os painéis de azulejos de António de Oliveira Bernardes e a talha dourada dos retábulos.
O que poucos sabem é que, escondidas sob as telas barrocas, estão sete pinturas murais, a fresco, que remontam à segunda metade do século XVI. O friso de pinturas que decorava a parte superior da nave foi restaurado e fotografado, no decorrer das obras de conservação, antes de voltar a ser coberto. Desta forma, pode ser apreciado nos painéis interativos e na aplicação informática sem “perder o conjunto barroco que é a imagem de marca da igreja”.
As camadas da história sobrepõem-se dentro do museu, espaço vivo e inacabado, em diálogo com a comunidade académica, associativa, visitantes de outras partes do país e do globo. Multiplicam-se as estórias e discursos (in)visíveis nos objetos e recursos multimédia, numa experiência intemporal e interativa à distância de um clique para visitantes de todas as idades, literacias e proveniências. No local, basta aparecer, de segunda a sábado, das 10h às 17h30.
O projeto museológico decorreu de uma requalificação total da igreja e dependências anexas, com o custo de quase 1,1 milhões de euros, com o apoio do Programa Operacional Regional Alentejo 2020 e do Fundo Rainha D. Leonor (258 mil euros), que permitiu finalizar as obras de conservação e restauro para instalação do referido núcleo.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas