A exposição ‘relíquias? O projeto reliquiarum’, aberta ao público até 29 de janeiro de 2023, inaugura um ciclo de oito exposições semestrais, no âmbito de um projeto de estudo multidisciplinar, com a duração de quatro anos, coordenado pela equipa do Museu de São Roque e o historiador António Camões Gouveia. Partindo da vasta coleção de relíquias e relicários do museu da Misericórdia de Lisboa, o projeto coloca em diálogo diferentes instituições, saberes e dimensões deste objeto de estudo, através de oficinas, exposições, conferências, publicações e um portal que congrega a documentação reunida e produzida no decorrer do projeto.

Guiando o VM pela galeria de exposições temporárias, António Camões Gouveia esclareceu que a exposição é o “início de um percurso de encontro de saberes em torno de um objeto”, com múltiplos olhares, que convocam o público a refletir a partir de oito núcleos temáticos: ‘inventariar?’, ‘documentar’, ‘o que é uma relíquia?’, ‘uma biblioteca para estudar’, ‘lindos relicários!’, ‘tudo são relíquias?’, ‘resultados? perspetivas?’ e ‘passado? futuro?’. 

“Perceber as relíquias, como objeto e imagem, como relação ou intermediação com o divino, como pequenos objetos carregados de memória e geradores de crenças e perpetuadores de devoção são algumas das dimensões que preocupam os seus estudiosos”, referiu no catálogo da exposição o coordenador científico do projeto e docente da Universidade Nova de Lisboa.

Segundo Teresa de Freitas Morna, diretora do Museu de São Roque, o ponto de partida é a “notável coleção do museu, com um universo atual de cerca de 1000 relíquias e 266 relicários”, que tem como epicentro a “importante doação de D. João de Borja, ocorrida no período filipino”, a que se juntaram mais tarde incorporações de diversas proveniências.

Partindo deste vasto acervo, a equipa vai reunir numa base de dados de âmbito nacional as relíquias e relicários de Misericórdias, paróquias, autarquias, museus e outras entidades com quem a Santa Casa de Lisboa se pretende associar. “É um projeto que se quer em rede, com instituições nacionais e estrangeiras. Já tivemos aqui pessoas de vários países em palestras e ações de formação, a partilhar estudos que estão a desenvolver”, revelou a responsável do museu.

Neste conjunto de entidades, Teresa de Freitas Morna destaca a parceria com a União das Misericórdias Portuguesas (UMP), “dado o seu universo disperso pelo território nacional”, que contribuirá com informação sobre as relíquias e relicários inventariados nas Misericórdias (ver caixa). Fruto desta parceria, estão representadas nesta primeira exposição relíquias de Viana do Alentejo, Celorico da Beira, Sousel e Amarante, com peças do século XVIII, período áureo no culto das relíquias, que variam na sua tipologia (caixa, crucifixo, ostensório e braço).

As relíquias e relicários contam histórias sobre o tempo em que foram criadas, adquiridas, doadas e veneradas pela população. Contam histórias sobre os santos que representam, os locais onde estão guardados e as pessoas que as consagram e lhes prestam culto. Refletem as relações de poder, movimentos sociais, práticas devocionais e correntes artísticas e são, por isso, objeto de interesse e estudo para investigadores das mais diversas áreas.

Em particular na última década, a bibliografia revela o aumento do interesse pelas relíquias, como explica Camões Gouveia, comentando os estudos religiosos sobre cultura material dos últimos dez anos. “Andámos à procura de objetos materiais, paramentos e imagens de santos, mas percebemos que isso estava distanciado das pessoas por lógicas eclesiásticas. Contrariamente, nas relíquias há uma sedimentação de culturas e pessoas e manifestações de cultura popular com uma dinâmica territorial brutal. Há festas, receitas e hábitos associados às relíquias e esse vai ter o tema da próxima exposição, a partir de relíquias de oito santos”.

Agendada para o Dia Internacional dos Museus, a segunda exposição vai marcar o arranque oficial do portal (ver caixa), conforme adiantou Teresa de Freitas Morna ao VM. “A partir de 18 de maio, o portal vai estar visível, o que representa um compromisso importante para toda a equipa”, historiadores, antropólogos, arquivistas e técnicos de conservação e restauro do museu, presentes na visita guiada que o VM acompanhou a 11 de janeiro, dia do aniversário do “Museu do Thesouro da Capela de São João Baptista” (designação em 1905).

Segundo Camões Gouveia, o objetivo do portal é “promover um grande encontro virtual de coleções”, que assegure uma cobertura do território nacional, com recurso a documentos, vídeos, desenhos, fotografias e relatos orais. “Vamos enumerar, descrever, cruzar informações e estudar a memória das pessoas que estão entre as relíquias e as devoções”, lê-se no núcleo da exposição dedicado aos resultados e perspetivas do projeto.

Na equipa de 16 elementos, incluem-se ainda os técnicos do arquivo histórico e gabinete de restauro e conservação da Santa Casa que, segundo o responsável pelo arquivo, Francisco d’Orey contribuem com a “cedência e o restauro de alguns documentos como as autênticas [documentos que atestam a veracidade das relíquias]”, que depois de restauradas serão transcritas e traduzidas do latim para o português moderno, a fim de integrar o portal online.

Ana Cargaleiro de Freitas, Voz das Misericórdias