É meia noite de sexta-feira Santa, está frio e a chuva teima em cair. As luzes apagam-se deixando a vila de Freixo de Espada à Cinta às escuras. Na Praça Jorge Álvares, onde está situada a Capela da Misericórdia e a Igreja Matriz, os fiéis já formam duas filas para assistirem ao ritual da ‘Encomendação das Almas’.
A ‘Encomendação das Almas’ ou ‘Sete Passos’, como vulgarmente é conhecido este rito, tem a sua origem nos tempos medievais. Uma “tradição oral” que, segundo António Morgado, coordenador do CLDS 3G da Misericórdia de Freixo de Espada à Cinta, “tem sobrevivido até aos dias de hoje passando de pais para filhos”.
Pagã para uns, religiosa para outros, esta cerimónia é tida como única. “Como aqui não se faz em mais lugar nenhum no país”, quem o diz são os penitentes [homens que participam no ritual] que junto à Capela da Misericórdia ultimam preparativos para a última procissão do ano.
O silêncio da noite é abruptamente quebrado pelo relógio da torre heptagonal da vila transmontana que anuncia pela segunda vez a meia noite. Ao bater da décima segunda badalada ouve-se um som estridente de ferro a cair sobre as lajes da Praça Jorge Álvares. Começaram os ‘Sete Passos’.
A procissão que sai à rua à meia-noite de todas as sextas-feiras da quaresma e que tem como fundamento rezar, através do canto, pela salvação das almas que estão no purgatório, sempre foi feita por homens da vila que voluntariamente se iam juntando à porta da Igreja Matriz. Mas isso mudou. Atualmente a Santa Casa da Misericórdia de Freixo de Espada à Cinta, com o apoio da autarquia local, é a responsável por manter viva esta tradição freixenista.
“É a Comissão do Senhor dos Passos, constituída por funcionários da Santa Casa e mandatada pela Mesa Administrativa da Misericórdia de Freixo de Espada à Cinta, que organiza o ritual para que este não se fosse perdendo no tempo”, conta ao VM Vítor Remédios, chefe do pessoal da Santa Casa e participante dos ‘Sete Passos’ há cinco anos.
O ponto de partida da procissão, que é também o ponto de chegada, é a porta da Igreja Matriz. Ali o grupo de penitentes, cerca de 20 homens, envergam uns balandraus negros e largos que lhes escondem o rosto e não lhes deixam reconhecer as formas.
Os das ‘Lares’ já lá vão. É a passo compassado de sete vezes que dois homens puxam, pelas ruas e vielas que compõem o percurso da procissão, as ‘Lares’, umas grossas correntes de ferro que nas pontas levam atadas antigas peças dos arados que outrora serviram para lavrar as terras. Os passos são dados de forma ritmada, obrigando o emaranhado de ferros a arrastarem-se contra o chão irregular fazendo ruídos e repercussões lúgubres.
Segue-os a passo lento a ‘Velhinha’. Segundo os penitentes, esta é a figura mais emblemática de todo o ritual. “É um rapaz curvado sobre si mesmo, em sinal de sacrifício. Leva um cajado para apoiar a caminhada, uma lamparina, alimentada a azeite, para alumiar o trajeto e uma bota com o vinho, para dar de beber àqueles que humildemente se ajoelham à sua frente e peçam perdão. O vinho simboliza o Sangue de Cristo”, conta António Morgado.
O grupo de cantadores é o último a surgir. Em todos os cruzeiros, capelas ou antigas igrejas, o grupo de homens, posicionado de forma circular e de costas voltadas para quem assiste à procissão, entoa um cântico dolente e penetrante em latim e em português pedindo pelas almas que se encontram no purgatório. Há na vila manuelina quem diga que antigamente as famílias dos indivíduos falecidos deixavam espalhadas pelas ruas esmolas para os penitentes, para que estes rezassem pela alma dos seus ente-queridos.
“Rezemos um Padre-nosso/ E uma Ave-maria/ À sagrada morte e paixão /Do filho da Virgem Maria”.
Hoje marcam presença na procissão mais três personagens. “Na sexta-feira Santa temos também as ‘Três Marias’ a participarem, que representam as Três Marias da Paixão de Cristo. Vão entre a ‘Velhinha’ e o grupo de cantadores”, diz o coordenador do CLDS 3 G, explicando ainda que esta é uma tradição cumprida, por norma, só por homens. “As únicas mulheres que entram na procissão são as ‘Três Marias’. Hoje em dia o grupo convida três senhoras para participarem. Mas só no último dia, que é quando elas entram. Nos restantes dias não participam mulheres.”
Atualmente fazem parte do grupo dos ‘Sete Passos’ cerca de 20 homens. O mais velho é Manuel Carrapatoso, de 75 anos, que diz “ter herdado o lugar do pai” e o mais novo é Manuel Maria, que com apenas 13 anos já segue os passos do pai, Ivo Fortuna, funcionário da Misericórdia de Freixo que há já largos anos participa no peculiar ritual.
A noite está escura como o breu e mal se reconhece a pessoa que está ao nosso lado. Um jovem que assiste à ‘Encomendação das Almas’ ajoelha-se e de mãos postas à frente da ‘Velhinha’ pede o “Sangue de Cristo”. A ‘Velhinha’ acede ao pedido. A procissão prossegue rompendo a noite a passo lento e compassado pelas ruas de Freixo de Espada à Cinta.
Voz das Misericórdias, Sara Pires Alves