No final de setembro, o VM acompanhou a equipa do Gabinete de Património Cultural (GPC) da União das Misericórdias Portuguesas (UMP) numa visita a Fronteira (Portalegre), no âmbito do projeto de inventário do património móvel, iniciado em agosto. Nas últimas semanas, os técnicos da UMP visitaram 11 Misericórdias inscritas no projeto, estando previsto até 2021 concluir o levantamento e estudo do espólio de cerca de 30 Santas Casas.
Uma verdadeira odisseia de descoberta e investigação que, segundo o responsável do GPC, Mariano Cabaço, permite “valorizar e garantir a segurança do património, identificar casos de degradação com vista a definir planos de restauro e identificar anomalias de propriedade” que culminam, em muitos casos, na restituição da posse dos bens às Misericórdias.
As incursões no terreno são precedidas de uma visita introdutória para explicar a metodologia de trabalho e aferir a dimensão e características do espólio. Concluída esta etapa, a equipa avança para a fase de registo e levantamento das peças, que hoje observamos, munida de equipamento fotográfico, fichas de inventário, instrumentos de medição e catalogação.
Começamos o dia de trabalho no coro alto da igreja matriz, onde está guardada uma coleção de bandeiras, lanternas e varas da Santa Casa, utilizadas nas celebrações da Semana Santa. A dupla de historiadores descreve, mede e fotografa as peças com foco e atenção aos detalhes. “A coleção de bandeiras está completa, não é comum, já faz uma bela sala de exposições”, comenta o responsável do GPC, Mariano Cabaço, enquanto manuseia as telas para fotografar.
À margem dos trabalhos, o provedor da Misericórdia de Fronteira valoriza a presença e colaboração de especialistas na área do património. “É fundamental para saber o que existe e conhecer o valor cultural e histórico das obras para a sua divulgação e conhecimento da população. No caso das bandeiras estamos a revisitar tempos e tradições antigas que, depois de estarem bem classificadas, poderão estar numa exposição permanente”.
Até ao momento, o único inventário disponível é o do arquivo documental, que se encontra em depósito na biblioteca municipal, prática elogiada pela equipa da UMP por permitir acondicionar o acervo em segurança, sem custos acrescidos.
Do outro lado da rua, surge o edifício da igreja e antigo hospital da Misericórdia. A estrutura arquitetónica mantém-se próxima da original, como nos confirmam os técnicos da UMP. “A configuração primitiva, da Casa da Misericórdia, ainda está muito pura”, explica Mariano Cabaço, referindo-se à estrutura do edifício-sede das confrarias que associava, no mesmo conjunto, um local para assistir doentes e peregrinos (hospital ou enfermaria), um espaço para realizar celebrações litúrgicas (igreja) e outro para as reuniões da mesa (casa do despacho).
Pisando a nave da igreja, os olhos atentam no retábulo do altar mor em talha dourada, que tem na base uma inscrição onde se lê “Nossa Senhora do Emparo”. Ao centro a imagem de Nossa Senhora da Conceição policromada, rodeada por querubins. Em poucos segundos, conseguem apurar a altura do retábulo monumental com um medidor a laser: 4,9 metros.
Estes instrumentos e um olhar treinado agilizam tarefas que podiam levar dias a fio. Em Fronteira, um dia será suficiente, mas a fase de registo e levantamento no terreno pode levar um dia ou várias semanas, consoante o número e tipologia de peças a inventariar. “O têxtil pode levar mais tempo devido à dimensão e porque é necessário coser uma etiqueta [identificação] no forro, é um processo mais moroso”, explica o historiador Pedro Raimundo.
Um olhar de relance para a porta lateral que dá acesso à sacristia é suficiente para comprovar uma suspeita: estamos diante de um confessionário, com uma janela a meio. Mais uma ficha de inventário para juntar ao dossiê, que no final do dia conta com mais de 70 registos.
Em certos momentos, imaginamo-nos numa película de George Lucas e Steven Spielberg acompanhando os exploradores ‘da arca perdida’ que descobrem tesouros inauditos em armários e salas cerradas à chave. “A beleza deste trabalho são estas surpresas”, exclama Mariano Cabaço, ao deparar-se com um armário, que foi resgatado do abandono e degradação pelo provedor.
“Diziam que não tinha valor nenhum, mas eu insisti na sua recuperação”, recorda Jaime Henrique Teles. A origem do móvel não é conhecida, mas a equipa da UMP pensa que poderá tratar-se de um oratório convertido em armário. Só a investigação com fontes documentais permitirá apurar a informação em análise.
A importância deste projeto passa também pela sensibilização dos corpos dirigentes para a salvaguarda deste património, de modo a evitar perdas irreparáveis e custos desnecessários. Pelo entusiasmo que encontramos em Fronteira, podemos dizer que a semente ficou lançada.
Da experiência acumulada nos últimos anos, o responsável do GPC constata que as “Misericórdias que inventariam os seus acervos desenvolveram projetos de qualificação e valorização dos espaços culturais, sejam igrejas, salão nobre, centros de interpretação. Isto significa que depois de se conhecer o que se tem entre portas, se valoriza mais estes espólios”.
Para os visitantes do futuro as vantagens são inegáveis e prendem-se sobretudo com a oportunidade de conhecer um património “identificado e contextualizado” e “potenciar o seu significado para afirmar a identidade da Misericórdia e do território em que se situa”.
11
Nesta primeira fase do projeto foram contempladas 11 Misericórdias, desde Marvão, Castelo de Vide, Montalvão, Arez, Amieira do Tejo, Gáfete, Montargil, Alegrete, Avis, Fronteira e Cano, estando previsto até 2021 concluir o levantamento e estudo do espólio de cerca de 30 Santas Casas. Este projeto de inventariação do património móvel foi retomado em agosto, no âmbito de um acordo de parceria entre a UMP e Santa Casa de Lisboa.
1000
Cerca de 1000 peças encontram-se em processo de inventário. Referente a este primeiro conjunto de 11 Misericórdias, este espólio é composto por todas as tipologias de património móvel: cerâmica, escultura, mobiliário, ourivesaria, azulejaria, latoaria, pintura, paramentaria, relojoaria, etc. A este número falta adicionar peças que não foi possível inventariar por questões de segurança. Sendo um “processo dinâmico”, este inventário será retomado assim que haja condições.
Da recolha no terreno ao estudo e divulgação
Identifica - A primeira fase do inventário é aferir a dimensão e características das peças, seguindo-se a descrição, medição, pesagem e fotografia.
Investiga - A segunda fase inclui estudo da informação, tratamento das imagens e publicação da ficha de inventário no software informático.
Valorizar - A médio prazo, as Misericórdias com inventários encetam esforços para qualificar os seus espaços culturais e abri-los ao púbico.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas