Quando foi construída, em meados do século XVI, pretendia também “apagar a memória” da antiga judiaria que existiu naquele mesmo local. Quase 500 anos volvidos, a igreja da Misericórdia de Leiria renasceu, com um projeto de restauro e de musealização que visa agora recuperar e preservar memórias de um tempo em que na Leiria medieval conviviam, com momentos de maior ou menor tolerância, comunidades cristãs, muçulmanas e hebraicas.
Após um longo período de portas fechadas e a degradar-se, o templo foi recuperado e acolhe hoje o Centro de Diálogo Intercultural de Leiria, que abriu portas em Julho do ano passado e já recebeu mais de nove mil visitantes. É um espaço onde se respira agora a “beleza discreta” do templo e onde o livro surge como “fio condutor” do projeto.
Vânia Carvalho, arqueóloga do Município de Leiria, explica que a exposição patente “fala das designadas 'religiões do livro' - Cristianismo, Judaísmo e Islão”, utilizando textos religiosos para “construir uma mensagem de paz” entre judeus, cristãos e muçulmanos. Mas, frisa, foi um processo “muito complexo” porque todos os escritos exibidos “tiveram de ser aprovados” por representantes das várias comunidades religiosas ali retratadas e pela Santa Casa da Misericórdia, proprietária do imóvel que o cedeu, em regime de comodato, à Câmara, abrindo, assim, caminho à sua recuperação, financiada através da Rede de Judiarias de Portugal.
Mas não é apenas “o valor simbólico” do livro, como “intermediário no diálogo entre povos e crenças distintas”, que sobressai da musealização do Centro de Diálogo Intercultural de Leiria. O projeto extravasa as quatro paredes da igreja da Misericórdia, para se estender à Casa dos Pintores, um edifício existente nas imediações que fazia também parte da antiga judiaria. É aí que se destaca o livro pelo seu “valor intrínseco de objeto”.
Conta-se, então, a história da tipografia dos Ortas, uma família de judeus que foge para Portugal após o édito de expulsão de Espanha. “Traz consigo uma prensa tipográfica e monta-a em Leiria”, conta Vânia Carvalho, referindo que um dos livros mais importantes aqui impressos foi o Almanach Perpetuum, de Abraão Zacatuo, usado com o astrolábio melhorado nas viagens das descobertas. “Isto permite-nos imaginar que de Leiria também se partiu para os descobrimentos”.
Voltemos à igreja da Misericórdia, cuja sacristia tem agora um equipamento multimédia que convida a fazer “o roteiro da judiaria” e onde se pode ficar a saber um pouco mais da história da cidade, através das palavras de Francisco Rodrigues Lobo, um cristão novo e poeta de Leiria.
“A ideia subjacente a todo o projeto era, sem branquear a história, permitir que ela nos ensine, quer sobre os momentos de maior tolerância quer sobre os de menor tolerância, e nos ajude a perceber que há um diálogo efetivo entre as diferentes comunidades”, realça a arqueóloga Vânia Carvalho.
A intervenção na igreja contemplou também a recuperação da “totalidade” dos elementos de arte sacra. A técnica adianta que está já a ser feito um projeto para enquadrar no edifício todos os objetos restaurados e que ficarão no coro alto. “O edifício da igreja da Misericórdia é tão relevante como apresentar as memórias da antiga judiaria ou falar da mouraria”, diz a arqueóloga e o provedor da irmandade não podia estar mais de acordo, enaltecendo o “excelente trabalho” de recuperação.
Carlos Poço recorda que a intervenção na igreja era “há muito desejada” pela instituição, que, no entanto, “não tinha capacidade financeira” para avançar com as obras. “O estado de degradação da igreja, que já apresentava problemas ao nível do telhado, era uma preocupação permanente. É, por isso, uma enorme satisfação vê-la recuperada e ao serviço da comunidade”, afirma.
Voz das Misericórdias, Maria Anabela Silva