Do Alto Minho ao Algarve, a obra das diversas Misericórdias é por demais evidente. Um trabalho notório, sobretudo na área social, mas também ao nível do património e da salvaguarda da memória coletiva das comunidades através da musealização de grande parte do espólio religioso, social e cultural que ao longo de vários séculos foi chegando à posse destas instituições. O caminho percorrido até ao momento foi exigente, mas o futuro, mais que de otimismo, é “de esperança”.
“De esperança porque é uma realidade que tem vindo a crescer nos últimos anos, muito a partir de um programa de inventário do património imóvel que tivemos”, justifica Mariano Cabaço, do Gabinete do Património Cultural da União das Misericórdias Portuguesas (UMP).
Segundo este responsável, no panorama de cerca de uma centena de Misericórdias que têm o seu espólio inventariado nem todas têm museus. “É mais consensual dizer que têm realidades museológicas, porque temos sensibilizado as Misericórdias para não chamarem museu àquilo que não merece ser museu. É preferível às vezes não avançar para projetos megalómanos e sem estrutura, mas antes musealizar pequenos espaços como o salão nobre ou as próprias igrejas, permitindo a sua visitação”, diz.
Foi esta realidade museológica nas Misericórdias de Portugal que esteve em discussão no passado dia 31 de maio, em Beja, onde a Santa Casa da Misericórdia daquela cidade alentejana recebeu as VI Jornadas de Museologia da UMP. Um dia de intenso debate e que serviu para Mariano Cabaço confirmar que este “é um processo que está em crescendo”, havendo cada vez mais a noção, no seio das Misericórdias, de que é necessário “ter algum cuidado com este tipo de equipamentos e, sobretudo, contar a verdade”.
“As Misericórdias são uma realidade muito específica, porque tratam dos legados que vieram à posse das instituições, como coleções particulares ou casas-museus que são doadas. Há que ter esse cuidado de apresentar esses equipamentos como foram entregues às instituições, porque isso vai valorizar o projeto”, advoga este responsável, que defende o trabalho em parceria. “Sempre que uma Misericórdia não consegue empreender a musealização por si só, temos aconselhado as parcerias. Esse é o caminho: trabalharmos todos em rede e ganhar escala, para termos condições de valorizar os produtos que vamos apresentar”, frisa.
Esta é, aliás, uma opção que muitas Misericórdias já estão a seguir. Durante as VI Jornadas de Museologia da UMP foram apresentados exemplos de boas práticas nesta área em diversas Misericórdias do Alentejo, casos de Ferreira do Alentejo, Mértola, Odemira, Vila Alva, Messejana (todas no distrito de Beja) e Mora (no distrito de Évora).
Nesta última, por exemplo, existem dois núcleos museológicos. Um na própria vila, que mostra o espólio artístico e religioso acumulado por esta instituição ao longo de quase 500 anos de história, e outro na Herdade da Barroca que apresenta uma exposição dedicada às diversas transformações sociais e económicas ocorridas neste concelho desde inícios do século XX.
Já em Messejana, no concelho de Aljustrel, a Misericórdia local dispõe de um núcleo etnográfico instalado na casa doada por um antigo médico da vila. O edifício está em mau estado de conservação, mas a Misericórdia de Messejana tem em marcha um projeto de parceria com a Associação Buinho no sentido de serem dadas novas dinâmicas ao núcleo. “Queremos preservar a memória com ligação à comunidade ainda viva”, explicou Carlos Alcobia, da Associação Buinho, durante as VI Jornadas de Museologia nas Misericórdias em Beja.
Novos projetos na UMP
São projetos desta natureza que deixam Mariano Cabaço, do Gabinete do Património Cultural da UMP, esperançoso no futuro. Até porque a União tem em andamento o projeto “Viver o Património”, que visa mostrar o património das Misericórdias “de forma organizada, planeada e com suportes pedagógicos”.
“O projeto, que pretende envolver em parceria as direções regionais de cultura e as entidades regionais de turismo, encontra-se numa fase de arranque. Pese embora já tenhamos experiências pontuais a funcionar, pretendemos organizar a oferta de forma sistematizada e a uma escala nacional”, explica este responsável, adiantando que este arrancará “com uma avaliação do estado de conservação desse património” e, nos casos em que se revele necessário, serão apresentadas propostas “de restauro e conservação”.
“Numa segunda etapa preparamos os espaços para abertura ao público, protegendo os acervos através do inventário e estudo científico”, acrescenta Mariano Cabaço.
Outro projeto nas mãos da UMP, mas ainda em fase embrionária, é o museu virtual das Misericórdias, que será desenvolvido em parceria com a Santa Casa de Lisboa. “Os objetivos são muito claros e exigentes: queremos dar a conhecer de forma correta, completa e dinâmica, a verdadeira história das Misericórdias”, desvenda Mariano Cabaço.
Para tal, continua, é ambição da UMP “apresentar uma narrativa que permita apresentar a génese das Misericórdias, a sua expansão em Portugal e no mundo”. “Este projeto terá um enorme potencial na divulgação do belíssimo património artístico e cultural das Misericórdias”, além de “projetar e valorizar as Misericórdias, divulgando a essência e a obra magnífica que estas instituições asseguram em cada comunidade”, observa.
Na opinião de Mariano Cabaço, as Misericórdias são “as entidades que conseguem apresentar ao público as vivências completas de uma comunidade, do berço à tumba”. Daí que projetos como os da UMP ou aqueles que estão a ser dinamizados pelas instituições espalhadas pelo país são essenciais para preservar o passado e construir o futuro.
“O património das Misericórdias, as suas manifestações artísticas e objetos etnográficos e iconográficos são o maior garante da afirmação da identidade destas instituições”, conclui.
Jornadas de 2020 vão ser em Santarém
A sétima edição das Jornadas de Museologia nas Misericórdias, em 2020, decorrerão na cidade de Santarém, no âmbito das comemorações dos 520 anos da Misericórdia local, anunciou José Augusto Silveira, do Secretariado Nacional da UMP.
No encerramento das jornadas realizadas na capital do Baixo Alentejo, este responsável sublinhou que o património das Misericórdias “é na verdade ímpar”, considerando que “promover o património através das mais variadas manifestações constitui o maior garante de afirmação da identidade das Misericórdias”.
“Só com qualidade nos projetos, sustentabilidade nos equipamentos e inovação na mensagem nos poderemos afirmar no panorama museológico em Portugal. Quanto mais conseguirmos esse objetivo, mais contribuiremos para o desenvolvimento local, para a coesão social e para a promoção cultural da nossa identidade secular”, acrescentou José Augusto Silveira que falava na sessão de encerramento das jornadas de museologia. Voz das Misericórdias, Carlos Pinto