“Estas jornadas têm cumprido o objetivo definido desde a sua criação [2014], conhecer a realidade museológica das Misericórdias e o seu vasto património, que faz parte da nossa idiossincrasia, modela a nossa identidade e tem valor económico”, frisou Manuel de Lemos, presidente da UMP, na sessão de abertura, reconhecendo ainda o “valor do trabalho que há na preservação do património e o que representa em termos de trabalho qualificado nesta área”.
De forma unânime, foi defendido que a valorização do património passa pela qualificação dos profissionais responsáveis pelo estudo, restauro e dinamização das coleções. Sem esses profissionais, não é possível cuidar, partilhar e assegurar a longevidade desse património.
Para D. José Traquina, bispo de Santarém, o “património surge se houver pessoas habilitadas para o criar e será conservado se houver pessoas educadas que o valorizem”. A salvaguarda de um legado, transmitido ao longo de várias gerações, depende do equilíbrio existente na sociedade e, por isso, considera que “sem educação, valorização da memória e condições básicas de sobrevivência, as gerações seguintes degradam o património herdado”.
Eva Neves, conservadora do Museu Diocesano de Santarém, corrobora esta ideia, com base no trabalho iniciado em 2006 na diocese, visando a inventariação e requalificação do património, num vasto território, que compreende 13 concelhos e 113 paróquias. “O trabalho tem de ser digno e realizado por pessoas habilitadas, que devem ser remuneradas. Para um trabalho continuado, persistente e que dê resultados temos de dar dignidade às profissões na área do património cultural”, defendeu.
Valorizar esta dimensão humana passa também por respeitar a memória local e o legado de homens e mulheres ao serviço de uma causa plurissecular. Por isso, a narrativa construída nos espaços museológicos das Misericórdias deve ser reflexo desta marca identitária única, conforme referiu o responsável pelo Gabinete do Património Cultural da UMP, Mariano Cabaço, num apelo feito na sessão de encerramento: “Um museu deve ser um espaço dinâmico, com uma narrativa coerente, onde se apresentam vidas, acontecimentos, conceitos e sentimentos. As Misericórdias têm uma responsabilidade acrescida de fazer a diferença e colocar as pessoas no centro das preocupações, na abordagem de conteúdos e atração de públicos às iniciativas”.
Esta singularidade exige, na opinião do provedor da Santa Casa de Santarém, Hermínio Martinho, um "trabalho continuado e pluridisciplinar", sustentado no conhecimento das instituições, e a construção de uma narrativa que traga para os "espaços museológicos a lembrança dos homens e mulheres que, de forma tenaz e anónima, ajudaram a minorar o sofrimento do outro, porque essa é também a nossa identidade".
Focando esta componente social e antropológica dos museus, o vereador da cultura da Câmara Municipal de Santarém, Nuno Domingues, destacou ainda o papel das Misericórdias na democratização do acesso à cultura e na aquisição de competências sociais e profissionais pelas populações, defendendo neste percurso uma aposta em “museus inclusivos centrados na participação cidadã e envolvimento das comunidades na promoção de memórias”.
Nesta interação e diálogo com o património à guarda das instituições, Vítor Serrão, docente e historiador de arte, destaca que, além do valor artístico, social e económico, existe “uma mais-valia humanística, que se prende com a comunhão e confronto com as obras de arte. O património não é algo inatingível, fechado numa torre de marfim, é algo que dialoga connosco, que devolve humanidade e nos faz cidadãos melhores”, concluiu o especialista.
O inventário está na génese de todo este esforço de valorização do património, como comprovam os testemunhos das Misericórdias de Santarém, Abrantes, Cascais e Évora, na partilha de boas práticas, realizada no período da tarde.
Partindo do levantamento do património móvel feito pela equipa da UMP, que permitiu identificar peças (pintura, escultura, mobiliário, cerâmica, têxteis e ourivesaria), desde o século XV ao XX, a Santa Casa de Abrantes pretende constituir um núcleo museológico no espaço da sala do definitório, sala do despacho e parte da sacristia. O projeto museológico ainda está por definir, mas o objetivo é avançar com o apoio da UMP e da autarquia.
Em Cascais, o registo e estudo do acervo – disponível online – serviu de ponto de partida para a redescoberta dos espaços e coleções da Misericórdia no museu inaugurado, em abril, no centro da vila. Nesta “devolução do património à comunidade”, conforme frisou a provedora Isabel Miguens, foi privilegiada a criação de uma narrativa coerente e acessível, em prol da democratização e diálogo permanente com novos públicos.
Com a mesma preocupação, o projeto museológico da Misericórdia de Évora partiu do estudo de um vasto arquivo histórico para a construção de uma narrativa com vários níveis de profundidade que, de acordo com o historiador José Calado, “além de mostrar as peças do espólio, dá a conhecer a história e forma de atuação das Misericórdias”.
Já em Santarém, a instituição anfitriã aproveitou a ocasião para anunciar uma novidade, que muito entusiasmou a plateia: “Temos o prazer de informar que a Mesa Administrativa deliberou afetar o edifício contíguo a esta bela igreja, onde outrora funcionou o hospital dos incuráveis, à criação de um espaço museológico, onde possam ser trazidos ao conhecimento público o espólio do antigo hospital de Jesus Cristo, o valioso acervo documental da Misericórdia, bem como algumas peças de celebração litúrgica”, confidenciou o provedor.
No final de um dia de reflexão e partilha de boas práticas, o vogal do Secretariado Nacional da UMP responsável pela área do património cultural afirmou que “estamos no caminho certo e que mais trabalho nos espera, tendo como prioridades a qualidade, a criatividade e a eficácia”. Para José Silveira, provedor da Misericórdia de Amarante, instituição que vai receber a oitava edição destas jornadas, em 2023, “só com qualidade nos projetos, sustentabilidade nos equipamentos e inovação na mensagem nos poderemos afirmar no panorama museológico e cultural”.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas