O mundo imaginário de Alexandre Cândido, utente da estrutura residencial da Misericórdia de Sines de 2005 a 2019 (data da sua morte), esteve em exposição na biblioteca municipal de Vila Nova de Santo André, ao longo do mês de abril, por ocasião do Dia do Livro Infantil. As figuras de traço inconfundível, que habitam centenas de folhas e cadernos guardados por amigos e familiares, estiveram em destaque, no átrio da biblioteca, acompanhadas pelas esculturas coloridas de Cláudia Clemente, artista local e voluntária na Santa Casa até ao início de 2020.

Os BAMIS – Bonecos do Alexandre da Santa Casa da Misericórdia de Sines - nasceram em 2016, quando Cláudia Clemente se tornou voluntária na instituição. Começou por dinamizar ateliês de artes plásticas com os idosos e numa das visitas ao lar apercebeu-se que havia um utente com um potencial artístico e dedicação invulgares. Sem interagir com os restantes, Alexandre Cândido ocupava uma mesa, num canto da sala onde decorriam as atividades, produzindo dezenas de desenhos com elementos do seu quotidiano, pessoas, plantas e figuras religiosas.

A primeira vez que Alexandre pegou num lápis foi dentro da Misericórdia de Sines. Os rabiscos já existiam, porventura, na sua cabeça. Mas apenas ganharam forma no papel quando teve liberdade para o fazer. Até entrar na estrutura residencial, os seus dias eram passados a guardar o gado (porcos e, mais tarde, ovelhas) para ajudar no sustento da família.

Alexandre Lopes Cândido nasceu a 28 de fevereiro de 1943, num monte na freguesia da Abela, concelho de Santiago do Cacém, no seio de uma família humilde com oito filhos. Aos três anos, foi vítima de um acidente com um carneiro que lhe deixou mazelas para o resto da vida. “Perdeu o andar e o falar nesse acidente. Médicos naquele tempo não havia e por isso o miúdo foi-se desenvolvendo à medida que Deus quis e que a natureza o ajudou. Ficou com aquela voz que não saía para fora e fez-se homem assim”, recorda uma das irmãs, Antonieta Ventura.

Gradualmente, recuperou a mobilidade, mas o desenvolvimento cognitivo e a expressão oral ficaram comprometidos, tendo abandonado a escola primária para trabalhar no campo. “Não tinha jeito e a professora descartou-o logo. Os pais puseram-no então a guardar gado porque era preciso alguém o fazer. Mas ele queria aprender outras coisas”, lembra.

O gosto pelo desenho revelou-se apenas na Misericórdia de Sines, mas já se manifestara, de forma subtil, nos gestos do dia a dia. “Ele fazia uns riscos no chão com a vara, para se entreter, mas nunca tomei atenção a isso. Só, mais tarde, o meu sobrinho me lembrou disso”.

À semelhança do guardador de rebanhos, que vivia nas letras de Fernando Pessoa, Alexandre encontrava no traço-poesia a sua “maneira de estar sozinho” e conhecer o mundo. Sem ambicionar ser poeta, começava por escrever “versos num papel que está no pensamento” gravando, anos mais tarde, em suporte físico as figuras que povoavam o seu imaginário.

“Eu acredito que o destino o colocou ali por uma razão. De outra forma, o talento dele ficaria perdido. Na dimensão em que ele desenhou, dificilmente neste mundo haverá outro Alexandre. E, por isso, era inevitável o nome dele aparecer nos bonecos [BAMIS]”, comenta a escultora Cláudia Clemente.

A artista residente em Sines há mais de 30 anos recorre à técnica de papier-mâché para a elaboração de fantoches, marionetas, pinhatas, peças decorativas e mobiliário, entre outros. Em 2016, o seu percurso cruzou-se com o da Santa Casa e de Alexandre Cândido, dando origem aos BAMIS. Inicialmente, foi recebida com desconfiança. Mas aos poucos, conquistou a afeição do “Senhor Alexandre”, levando-lhe material de pintura e interpelando-o sobre as figuras que registava no papel.

Foi dessa interação que surgiram os primeiros desenhos com cor. “Comprei-lhe materiais e pedi-lhe que usasse cores. Um dia reparei que já estava a usar e elogiei. Ao que ele me respondeu: ‘a chefe pediu’”, conta divertida Cláudia Clemente.

A cor adicionou um novo elemento expressivo às imagens, revelando o estado de espírito do artista em cada momento. Segundo a animadora Carla Camocho, que acompanhou o percurso de Alexandre Cândido desde a sua integração na Santa Casa até à data da sua morte (2019), “quando andava mais aborrecido usava mais o preto e se andava mais extrovertido usava os laranjas, vermelhos, amarelos. E a Nossa Senhora tinha sempre o manto azul”. 

Enquanto veículo de expressão individual, os desenhos potenciavam a interação com o exterior e contribuíam para o reconhecimento de Alexandre entre os seus pares. “Quando em 2018 fizemos a primeira exposição, no mês do idoso, ele foi todo bem arranjado, afinal de contas era o grande artista. Ele estava muito feliz naquele dia e a própria irmã identificou nas expressões dele essa felicidade. Ele reconheceu ali o seu trabalho”, lembra a animadora.

Para o provedor Eduardo Bandeira, a exposição inaugurada em abril de 2022 é um “caso emblemático da importância da interação com os animadores e todas as pessoas que dedicam atenção aos utentes. É importante encontrar pessoas com caraterísticas que se adequam aos residentes. Neste caso, foi evidente que esta voluntária conseguiu captar a atenção do residente e estabelecer uma relação de cumplicidade, que permitiu este resultado”, salienta.

Os BAMIS, esculpidos pelas mãos de Cláudia Clemente, dão continuidade a este legado que poucos compreenderam, mas muitos apreciaram, inventando nomes e histórias para as figuras. “Ele continua vivo através dos bonecos e isso deve-se à menina Cláudia”, conclui a irmã, Antonieta Ventura.

 

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas