Dez anos depois, a tradição voltou a cumprir-se em Óbidos. A secular procissão de Nossa Senhora da Piedade regressou às ruas da vila e nem o vento agreste que se fez sentir naquele final de tarde de dia 29 de outubro afastou fiéis e turistas, que encheram as ruelas para ver passar a padroeira, transportada numa berlinda (carruagem). Pelo caminho, Nossa Senhora foi presenteada com declamação de poesia, fado, canto lírico e coral e música.
A presença da berlinda, puxada por dez homens com trajes de libré do século XVIII, com o oratório onde seguia a imagem da Virgem é uma das peculiaridades desta procissão, que depois de um interregno de quase dois séculos seria retomada em 2007 e 2008. Depois disso, esteve de novo suspensa, até que este ano, após o desafio lançado por "um grupo de homens e de jovens", a Misericórdia de Óbidos recuperou a tradição, com o apoio do pároco local.
Tal como há cerca de uma década, Bruno Duarte integrou o grupo de homens que conduziu a berlinda pelas ruas apertadas de Óbidos. Motorista de profissão, reconhece, no entanto, que a pequena carruagem exige outras habilidades, sobretudo devido à configuração das artérias da vila. "Não é fácil porque as ruas são estreitas, empedradas e há algumas subidas pelo meio. Contudo, nada que com gosto e boa vontade não se ultrapasse", assegura Bruno Duarte, sublinhando a importância de as comunidades manterem vivas as suas tradições. Um apego que, a par da devoção religiosa, o faz participar "há mais de 25 anos" nas diversas procissões que, ao longo do ano, se realizam em Óbidos. "Já foram muitas. Hoje, algumas deixaram de se fazer. Era importante que a tradição continuasse e que, em certos casos, fosse retomada", defende.
Por parte da Misericórdia o desafio está aceite, com o provedor Carlos Orlando a expressar o desejo de que a procissão de Nossa Senhora da Piedade tenha regressado para ficar. "É uma tradição secular que, à semelhança de outras atividades que se têm vindo a realizar, são momentos altos do património turístico e religiosos de Óbidos", reconhece. Neste caso em particular, o provedor destaca a adesão que o evento teve. É que, "apesar do tempo agreste, as pessoas apareceram", quer para integrar a procissão quer para assistir, conferindo às ruas de Óbidos, mesmo àquelas mais afastadas dos habituais roteiros turísticos, uma agradável moldura humana.
Um dos momentos altos da procissão foi vivido ainda no interior da igreja da Misericórdia, onde se iniciou o cortejo com a interpretação do Ave Maria de Schubert pela solista Dora Carvalho, acompanhada de Hugo Oliveira ao piano. O cortejo seguiu depois em direção ao Largo de São Pedro, onde, a partir da janela dos Paços do Concelho, o presidente da Câmara de Óbidos, Humberto Marques, recitou o soneto "Nossa Senhora da Piedade", da autoria do padre Malhão, sacerdote natural do concelho que, no século XIX, se destacou também como poeta.
A procissão parou de novo no Largo do Padrão Camoniano. Foi o momento para um grupo de escuteiros oferecer flores à padroeira. De seguida, cantou-se o fado. Novamente uma criação de um autor local, Abílio Silva, de devoção à Senhora da Piedade, num fado interpretado por Fernando Gonçalves de Sousa.
Outro momento significativo aconteceu na Rua Nova, onde D. Noémia, uma das poucas habitantes que vive na zona muralhada da vila, que "tem menos de 50 moradores", recitou o poema "A Senhora da Piedade", escrito pelo diácono Maximino Martins, findo o qual houve lugar a música de gaita-de-foles.
O cortejo rumou depois em direção ao Largo de São Tiago, com a procissão a finalizar na Praça de Santa Maria, onde três coros, acompanhados por elementos das bandas filarmónicas do concelho, receberam a imagem da padroeira, que ficaria depois na Igreja de São Tiago.
Para o padre Ricardo Figueiredo, pároco de Óbidos, esta procissão foi "um momento bonito de oração e de devoção" à padroeira da vila. O sacerdote agradece, por isso, à Misericórdia pela iniciativa e por "presentear o povo de Óbidos com mais este gesto de devoção e de testemunho do amor e do carinho a Nossa Senhora".
Por sua vez, o provedor refere estar convicto “de que esta reposição da tradição longínqua da religiosidade popular e, ao mesmo tempo, testemunho para os séculos futuros, vai ao encontro de mais um grupo de jovens que deseja participar neste tipo de expressões, mais popular e menos solene, ainda que imbuída de forte religiosidade.”
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Voz das Misericórdias, Maria Anabela Silva