No centro histórico de Vila Franca de Xira, o património material e imaterial da Misericórdia conta histórias da cidade, das gentes da terra e das irmandades e confrarias entretanto extintas na localidade.

Marcado por um traçado de ruas estreitas e sinuosas, o núcleo primitivo da urbe tem no largo da Misericórdia, com a igreja de fundação quinhentista e o antigo hospital, um dos seus ex-libris. Nas imediações da cidade, este património arquitetónico é enriquecido pelo Santuário de Nossa Senhora da Boa Morte, local de peregrinação anual, e pelo Palácio de Farrobo (século XIX), uma espécie de retiro de lazer, onde a alta burguesia e nobreza se reuniam para festas, caçadas e espetáculos.

“Um património muito rico” que, na opinião do provedor Armando Jorge Carvalho, importa “preservar e tornar visitável à comunidade” através de um núcleo museológico aberto ao público. O projeto, embora “prioritário”, aguarda financiamento. 

Neste momento, o espólio de arte sacra, constituído por paramentos, capas e opas da Misericórdia e outras irmandades, telas representando ex-votos ao Senhor dos Aflitos e dos Incuráveis, imagens de madeira e de roca (séculos XVII e XVIII), livros manuscritos de canto litúrgico (1755 e 1813) e peças de ourivesaria dos séculos XVI e XVII, está exposto num espaço adjacente à igreja, que apresenta sinais de humidade, apesar das obras de restauro realizadas em 1991.

Visitável mediante marcação, o atual núcleo museológico guarda ainda a mesa do concílio e cadeiral (século XVIII/XIX), onde os mesários reuniam antigamente, imagens do Senhor dos Passos, utilizadas nas procissões da Semana Santa até 1940, e uma carreta funerária em madeira, do antigo hospital civil de Vila Franca.
Na igreja, os principais motivos de interesse para os fiéis e visitantes são os altares barrocos em talha dourada, cinco pinturas a óleo (século XVIII), com cenas da vida de Cristo e os painéis de azulejos setecentistas, com representações das catorze obras de misericórdia.

Num estudo sobre a representação das obras de misericórdia, em azulejo, a investigadora e coordenadora da Rede de Investigação em Azulejo (Universidade de Lisboa), Maria Rosário Correia de Carvalho, destaca as potencialidades narrativas desta obra. “Este é um dos maiores conjuntos do que se convencionou denominar por painéis falantes, nos quais as frases [de versículos bíblicos] são pintadas de forma a saírem da boca das figuras”.

Durante a visita-guiada pela igreja, o historiador David Silva, que é também irmão da Misericórdia, destacou outro elemento “interessante” associado ao culto do Espírito Santo e às tradições taurinas da região ribatejana. Durante a procissão de Pentecostes, ponto alto da Festa do Divino Espírito Santo, o touro entrava pela porta principal da igreja, em direção ao altar, e era “benzido antes de servir de alimento aos pobres da vila”. “É uma ligação espiritual à festa dos touros, associada ao sacrífico do animal. Em Vila Franca, esta procissão deixou de se fazer no século XIX”, recorda. 

Reflexo de uma história marcada pela incorporação de bens patrimoniais de outras irmandades, entretanto extintas, o património arquivístico é constituído por documentos (séculos XVIII ao XX), relativos à vida administrativa e económica da Santa Casa, das irmandades, confrarias e organizações pias, que estavam anexas à Misericórdia ou à paróquia. 

Na despedida, subimos à torre sineira para um momento inédito. O sino oitocentista foi tocado pela primeira vez em vinte anos pelo guia-historiador, já experiente nestas lides musicais. O momento foi registado com surpresa pelo VM a quem David Silva confidenciou: “a última vez que o sino tocou foi no casamento do meu irmão. Curiosamente, correu melhor agora”.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas