Andreia e José encontram-se todas as segundas-feiras no ginásio do Centro de Apoio e Reabilitação para Pessoas com Deficiência (CARPD), em Touguinha.
Durante uma hora, desafiam leis da gravidade, limites do corpo e preconceitos da mente. A primeira trabalha como ajudante de lar no centro da Misericórdia de Vila do Conde, o segundo é utente da instituição há mais de 20 anos. São intérpretes, a solo, do grupo de dança “Arte Viva”, um dos casos de superação e inclusão pela arte que damos a conhecer no mês em que se assinala o Dia Mundial da Dança.
Ninguém imagina que se pode fazer piruetas com um simples gesto de cabeça.
Mas José Lamas prova o contrário. Impossibilitado de realizar movimentos com os quatro membros, o utente pressiona o manípulo com o queixo enquanto Andreia Alves esvoaça empoleirada na cadeira. “É algo surpreendente”, descreve-nos a colaboradora, também ela com uma deficiência auditiva.
A cadeira que os separa é simultaneamente a cadeira que os une através de amarras e suportes instalados para o efeito. “Adaptámos a cadeira para a colaboradora se apoiar e eles entusiasmaram-se imenso”, conta o diretor do CARPD, recordando a primeira atuação em 2014.
Quando sobem ao palco, não procuram olhares condescendentes do público. Pelo contrário. “Queremos que deixem de olhar para as deficiências e incapacidades e olhem para as potencialidades, para o que sabem fazer. As semelhanças são muito maiores que as diferenças. Repetimos as vezes que forem necessárias, o grau de exigência é enorme”, defende Sérgio Pinto. O mesmo acontece com o grupo de dança inclusiva e o rancho folclórico sedeados no centro. “Isto é uma casa de artistas”, resume em brincadeira.
Os utentes do centro de atividades ocupacionais da Misericórdia de Mortágua são protagonistas do segundo caso de superação pela arte. Apelidados de “CAOgirls” e “CAOboys”, os intérpretes do grupo de expressão artística reúnem-se para ensaiar duas vezes por semana. Já participaram em videoclipes (não oficiais) de músicos como JP Simões e Márcia, que os fazem “voar para além da pele que há em nós”, e vibram sempre que têm oportunidade de partilhar vivências em palco. “Eles adoram o reconhecimento e as pessoas ficam surpreendidas porque não imaginavam que fossem capazes”, constata a diretora técnica, Sofia Cunha.
No mesmo distrito, estão em curso os preparativos para a estreia do grupo “Dançando com a Diferença - Viseu”. Constituído por instituições e pessoas da comunidade, o núcleo coordenado pelo coreógrafo Henrique Amoedo é o primeiro a ser criado fora do arquipélago da Madeira, contando com a participação do Centro de Apoio a Deficientes de Santo Estêvão. “Há muito que o Teatro Viriato [sede do projeto] desenvolvia uma relação próxima com esta instituição e por isso era de todo conveniente o convite para integrar o Dançando com a Diferença – Viseu”, justificou o fundador e diretor do grupo.
Em representação do equipamento da União das Misericórdias (UMP), a terapeuta Anabela Teixeira e a utente Isabel Ferreira dançam ao lado de pessoas com e sem deficiência, provando que “através da dança somos todos iguais”. Na opinião da técnica-bailarina, os benefícios extravasam o domínio da reabilitação motora. Por isso, além das melhorias na coordenação, equilíbrio e outras funções motoras, destaca o potencial de “socialização e comunicação” da dança. “Eles comunicam através do corpo. A dança é um instrumento de expressão e diálogo”.
Segundo o coreógrafo Henrique Amoedo, as mudanças, de início quase impercetíveis, acontecem “num âmbito de maior proximidade”. Mudanças na autoestima dos intérpretes geram transformações “na forma como são vistos pelos pais, amigos, familiares” que, por seu turno, alteram a imagem que os diferentes públicos têm sobre a deficiência (ver entrevista).
As transformações começam, muitas vezes, dentro de portas. Nos corredores, junto dos próprios colaboradores, como constata a técnica de educação especial do Centro João Paulo II, outro dos equipamentos da UMP na área da deficiência. Por isso, sempre que possível, a responsável pelo grupo “Rodas Dançantes” envolve a equipa técnica e as ajudantes de lar nos encontros semanais com os utentes. “Convidamos sempre mais alguém para enriquecer a experiência. É importante conhecer o outro lado do trabalho com os utentes”.
José Manuel, Maria João, Alda Teresa, Ana Sofia, Soraia e Maria José dão cara e corpo ao projeto criado em 2002. Apenas um tem marcha autónoma, mas como nos diz Lídia Saramago, “não há limites nem coisas inacessíveis, eles são bailarinos”.
No futuro, o responsável pela introdução do conceito “dança inclusiva” em Portugal, Henrique Amoedo, espera que esse termo deixe de fazer sentido. Isso significaria, como escreveu em 2002, que teríamos “cumprido o nosso papel na procura de uma real inclusão destas pessoas”.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas
Foto por: José Alfredo