Diário clínico: Manuel João (nome fictício), 52 anos, utente do Centro de Apoio Social do Pisão, desde 2002. Patologias: debilidade mental grave, insuficiência cardíaca com fração de ejeção deprimida, fibrilação auricular paroxística (vulgo arritmia cardíaca) e doença pulmonar obstrutiva crónica. O diagnóstico obriga a uma monitorização regular do estado clínico e controlo da medicação pelos profissionais envolvidos no circuito do medicamento. Na sua folha terapêutica, constam mais de 10 substâncias: quetiapina, pregabalina, zuclopentixol, melperona, enalaperil, nebivobol, edoxabano, metolazona, torasemida, indacaterol, esomeprazole e atorvastatina.
A lista parece infindável para um leitor sem formação na área da saúde, mas segundo o diretor clínico do centro gerido pela Misericórdia de Cascais, Daniel Rei, enquadra-se no perfil dos residentes: homem (80% dos residentes), polimedicado, idade acima dos 50 anos e patologias graves associadas. “Este caso reflete bem a complexidade dos nossos doentes porque se trata de uma pessoa com debilidade mental e doença cardíaca grave, que tem impacto na esperança de vida. A nossa realidade é esta, doenças psiquiátricas e outros transtornos, como doenças cardíacas graves, diabetes, hipertensão ou demências de origem vascular”, explica o especialista em medicina interna, responsável pelo serviço de saúde, desde 2012.
A medicação é o primeiro passo para garantir a estabilidade dos doentes encaminhados de vários pontos do país. Quando entram no CASP, são avaliados por uma equipa multidisciplinar (médico, psiquiatra, enfermeiro, psicólogo, animadora, terapeuta ocupacional, assistente social), que define um plano individual de tratamento, adaptado às necessidades do doente.
O circuito do medicamento começa no momento do diagnóstico. O médico avalia sintomas e prescreve a medicação, na plataforma informática criada em 2012 (PIGUS), gerando um alerta que é enviado para a Unidade de Armazenamento e Preparação de Terapêutica (UAPT). Na UAPT, o farmacêutico e duas técnicas de farmácia asseguram as condições de armazenamento (controlo de humidade e temperatura) e preparam a medicação em blisters, com diferentes cores (azul para homens, rosa para mulheres, verde para saídas ao exterior), onde consta a identificação do doente, nome dos medicamentos e posologias.
No armário com mais de 100 gavetas, organizadas de A (Acetilcisteína) a Z (Zentel), estão todas as formulações, comprimidos ou cápsulas, necessárias para dois meses de funcionamento. Nesse intervalo de tempo, os três médicos (diretor clínico e dois psiquiatras), emitem novo receituário, que segue para a farmácia da Santa Casa de Cascais, no centro histórico da vila. No dia da receção da encomenda, entram milhares de embalagens, pela porta da UAPT. “São muitas caixas. Consome um dia de trabalho à equipa, para confirmar o que chega, verificar validades, lotes e quantidades”, explica o farmacêutico Frederico Alves, numa sala da UAPT onde estão guardados os injetáveis, pomadas, colírios e bombas inaladoras.
O circuito só fica concluído com a administração dos medicamentos, sob a supervisão da equipa de enfermagem, no refeitório e nas camaratas, em cada piso. A falta de adesão ao tratamento predomina entre os doentes psiquiátricos – cerca de 30% a 40% segundo o diretor clínico – por isso esta etapa é imprescindível para o sucesso da terapia. “É uma toma assistida e presenciada e, nalguns casos, temos de confirmar se eles engoliram o medicamento”, revela a enfermeira coordenadora Rosa Castanheira, com “20 anos de casa”.
Os enfermeiros e auxiliares estão na primeira linha de intervenção. Só eles sabem de cor o nome dos 340 residentes e conseguem traduzir as queixas, sem qualquer mediação verbal. São tradutores no silêncio, descodificando sinais de alerta nos comportamentos do quotidiano. “Se isto fosse uma guerra, eles estavam nas trincheiras”, descreve o diretor clínico, Daniel Rei.
Reabilitação e integração na comunidade
A medicação é apenas uma variável na equação. Todos estão de acordo quando o psiquiatra Fernando Esteves afirma que a “ocupação é fundamental para reabilitar e evitar a degradação intelectual do doente”. E ocupação não falta no Pisão: jardinagem, carpintaria, pintura, teatro, culinária, dança e movimento, tecelagem e, mais recentemente, futebol. Um sem fim de atividades, adequadas às necessidades de cada utente e à capacidade da equipa do CASP, que não para de crescer. Em 2016, o departamento de animação sociocultural veio complementar o trabalho desenvolvido no centro de atividades ocupacionais Casa do Sol (para 25 utentes), com atividades livres, sem calendário definido, que se adaptam à vontade de cada um.
“Este projeto é direcionado a pessoas mais dependentes, com dificuldades motoras e/ou de comunicação. Acolhemos todos e trabalhamos competências sociais para que tenham um comportamento mais adequado ao contexto e às pessoas”, explica a animadora Cláudia Dias.
Durante o ateliê de pintura, a concentração está ao rubro. As horas voam e o gesto primitivo, que conduz o pincel sem premeditação, revela ideias nunca exteriorizadas. “É a minha forma de comunicar, de me exprimir, sinto-me livre, vou conduzindo as cores e movimento das linhas”, conta um dos alunos, numa pausa entre pinceladas. Por instantes, a doença passa para segundo plano e o rosto é resgatado da apatia. “Mesmo nós que somos saudáveis se ficarmos a olhar para uma parede em branco o dia todo ficamos doentes, não é?”, lembra a animadora.
A estadia no Pisão é quase sempre longa porque se tratam de doentes crónicos e, na maioria dos casos, dependentes, cujas famílias não têm suporte financeiro nem cuidados adequados na comunidade, para garantir o acompanhamento a longo prazo. A população residente no centro é maioritariamente masculina (80%), com 65 mulheres e 275 homens, diagnosticados com esquizofrenia, debilidade mental, personalidades antissociais associadas a alcoolismo e perturbações bipolares, a que se juntam doenças cardíacas, hipertensão, diabetes e outras.
A insuficiente resposta de cuidados de saúde primários e cuidados continuados, em saúde mental, assim como a falta de articulação com estruturas de apoio social, limita o tratamento, reabilitação e integração destes doentes na sociedade, como revela o mais recente estudo do Conselho Nacional de Saúde divulgado no final de 2019, “Sem mais tempo a perder – Saúde mental em Portugal: um desafio para a próxima década”. Refletindo sobre este cenário, o psiquiatra Fernando Esteves, que soma 20 anos de experiência no CASP, acredita que a evolução passa por uma aposta na reabilitação e humanização dos cuidados, que encara o doente mental como pessoa e não como objeto. Este tipo de instituição não é o ideal, porque o ideal seria a reinserção familiar, mas é positiva porque dá um sentido à vida das pessoas”.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas