A vida de Eugénio Encarnação foi passada em água, navegando noites a fio pelo Guadiana a partir da Penha d’Águia. Era o rio que sustentava a família e se a noite era de pescaria a bordo do “Carlos Manuel”, os dias eram passados em redor de redes e tresmalhos, a reparar à mão o que fosse necessário para a próxima jornada. São estes gestos que os seus dedos agora repetem amiúde na pequena casa na aldeia de Fernandes (concelho de Mértola), deitado na cama para onde a demência o enviou. Há quase década e meia que Eugénio sofre desta doença e cabe à sua esposa, Otília, cuidar dele.
“Isto exige muito trabalho e às vezes é muita confusão. Há momentos em que ele está muito agitado e a gente tem que ter muita paciência. Por isso faço de tudo um pouco: brinca-se, chora-se, canta-se… E é assim que passamos os dias”, confidencia Otília, 65 anos, mãos envolvidas pelo avental que a hora é de preparar o almoço. “Hoje temos entrecosto com batatas e feijão verde”, revela de sorriso franco.
Eugénio é uma das quase três dezenas de pessoas que são atualmente apoiadas pela unidade domiciliária de cuidados paliativos (UDCP) de Mértola. O projeto nasceu em 2009, juntamente com outro em Trás-os-Montes, e chegou ao terreno um ano depois, numa iniciativa pioneira financiada pela Fundação Calouste Gulbenkian a que se associaram Santa Casa da Misericórdia de Mértola, Câmara Municipal, Centro de Saúde e Núcleo de Voluntariado. Em 2018 a iniciativa passou a ser apoiada por fundos comunitários, através de dois programas do POISE – Programa Operacional Inclusão Social e Emprego, ficando a Misericórdia de Mértola como entidade gestora. O objetivo manteve-se: proporcionar atendimento integrado e multidisciplinar a doentes (e respetivas famílias) a necessitar de cuidados paliativos.
“Este projeto é uma mais-valia. Porque se não houvesse este serviço, a maior parte dos utentes teriam que estar institucionalizados ou andar em sofrimento em ambulâncias de um lado para o outro”, nota Cidália Guerreiro, da Santa Casa. Uma evidência reforçada pelo facto de se tratar do concelho de Mértola, no interior do Alentejo, com cerca de 1300 quilómetros quadrados e onde qualquer viagem é um verdadeiro tormento. Esta unidade domiciliária “possibilita que as pessoas fiquem em casa e tenham acesso a acompanhamento profissional 24 horas por dia, além de minimizar viagens e ser um complemento aos serviços que já existem”, diz.
A mesma opinião tem o médico António Matos, diretor-clínico da UDCP. A mais-valia deste projeto é “permitir que as pessoas possam viver até ao fim da vida rodeados das suas coisas, perto dos seus amigos e família, de modo a minimizar o sofrimento e majorar o bem-estar”, afiança. “É indiscutivelmente um serviço muito importante, pois temos aqui [no concelho] muitos idosos com patologias que encaixam nos paliativos”, acrescenta José Alberto Rosa, provedor da Misericórdia de Mértola.
Cuidadores são essenciais
A UDCP de Mértola apoia os utentes sete dias por semana, 24 horas por dia, seja de forma presencial ou através de aconselhamento telefónico. Para tal conta com uma equipa fixa de quatro enfermeiras, a que se juntam, em regime de colaboração, enfermeiros e médicos do centro de saúde e a equipa de enfermagem da unidade de cuidados continuados da Misericórdia de Mértola, além de uma psicóloga e uma psicopedagoga, assistentes sociais da Santa Casa e do Município e ainda os voluntários do Núcleo de Voluntariado.
Um verdeiro trabalho de parceria (que se estende também aos lares de Mértola e das aldeias de Moreanes e Montes Altos) com o intuito único de proporcionar a melhor qualidade de vida possível a quem necessita de cuidados paliativos no “inverno” das suas vidas. Os casos mais habituais são doentes oncológicos, pessoas que sofreram AVC ou que padecem de demências.
“Não estamos aqui para prometer curas ou criar expectativas falsas em matéria de tratamentos, mas sim para ajudar no controlo da dor e outros sintomas, para que as pessoas possam viver o resto da sua vida com o máximo de dignidade possível e com alguma qualidade de vida. E também prestamos apoio afetivo e espiritual”, explica Cidália Guerreiro.
Em tudo isto, continua a técnica da Misericórdia, é imprescindível o papel dos cuidadores, que por norma são os cônjuges e/ou os filhos. “O cuidador tem de existir. É um parceiro que nós ‘treinamos’ para que, quando acontecer determinada situação, ele saiba o que fazer e que resposta dar” no momento, revela.
Otília Santana é uma das cuidadoras apoiadas pela equipa da UDCP de Mértola, assim como as irmãs Bárbara e Maria Bárbara, que cuidam à vez (juntamente com outra irmã) do pai, José Paulino, 91 anos, residente na pequena aldeia da Mesquita, de onde não quer sair. “É um apoio importante porque não estamos tão sozinhas e se tivermos algumas dúvidas sabemos que há ali uma referência. Também vêm cá a casa e conversam um bocado com ele”, conta Maria Bárbara, não escondendo que o papel de cuidadora é muito exaustivo. “À noite não descansamos, pois tem de estar sempre alguém de serviço”, diz.
Trabalho para continuar
Com nove anos de existência no terreno, a UDCP de Mértola entrou recentemente numa nova fase da sua atuação, com financiamento garantido pelo Portugal 2020, através do POISE. Um trabalho que todos os parceiros envolvidos, a começar pela Misericórdia alentejana, consideram ser vital manter, dada a realidade demográfica do concelho.
“Apesar das dificuldades que existem, este projeto é para continuar”, promete o provedor José Alberto Rosa. Ainda assim, continua, será necessário enfrentar (e ultrapassar) alguns desafios, “nomeadamente na referenciação” dos doentes a partir do Sistema Nacional de Saúde.
Já o médico António Matos considera ser essencial “melhorar aspetos de articulação interna com a melhoria dos sistemas de registo”, assim como “formar profissionais que possam assegurar a continuidade das prestações, tentar que se melhore a articulação com as outras unidades prestadoras e aumentar a divulgação da equipa e das suas prestações”.
Voz das Misericórdias, Carlos Pinto