“A maior romaria portuguesa é ir para a urgência dos hospitais diariamente. Convido todos a dar uma volta pelo interior dos hospitais: só lá há idosos”, alertou Manuel de Lemos, presidente da União das Misericórdias Portuguesas e um dos autores do livro “Saúde em Portugal – Pensar o futuro”, coordenado pelo ex-ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, e apresentado a 12 de maio, no auditório do Centro Corporativo da Santa Casa da Misericórdia do Porto.

São 290 páginas de ciência e de ideias concretas, escritas por 11 personalidades, que refletem sobre a reforma, a inovação e a sustentabilidade do setor da saúde. “Tenho muito orgulho em ter coordenado esta obra que reuniu um conjunto de pessoas capazes de pensar fora de um contexto em que os conflitos de decisão ou de interesse possam existir”, referiu Adalberto Campos Fernandes, desejando que os contributos sirvam para provocar a discussão de um tema tão essencial e presente na nossa sociedade. “É preciso olhar para a saúde como um poderoso fator de diferenciação, de desenvolvimento económico, de inovação tecnológica e de bem-estar social”, sublinhou.

Luís Portela, presidente da Bial, que prefaciou e apresentou o livro, começou por referir que “se faz boa saúde em Portugal, mas podemos fazer melhor. Há um enorme potencial de desenvolvimento e a saúde precisa de uma reforma”.

O prefaciador prosseguiu, dizendo que as ideias apresentadas são dos autores, mas que, em muitos aspetos, convergem com as suas, sublinhando que “ficaria muito contente se deste livro surgisse uma reforma com os mesmos contornos”.

Os autores defendem uma gestão profissional e descentralizada em todo o SNS, avaliada pelos resultados em saúde e pelos resultados financeiros. “Cada uma das instituições deve ter acesso a mais recursos, mais pessoas e mais equipamentos de acordo com os resultados que tenham e com a escolha que os utentes fizerem dessa instituição”, acrescentou Luís Portela, considerando que deve haver coragem política para, se necessário, “fechar portas”.

Em relação ao financiamento da saúde, o presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário São João, Fernando Araújo, disse que “é assente em orçamentos irreais”. “Quando o orçamento de cada hospital é aprovado, no início do ano, nós sabemos que não vai ser cumprido, sendo, ao longo do ano, injetado capital sem nenhuma exigência ou avaliação sobre a qualificação dessa dívida. É uma gestão que não motiva, que desqualifica e que não assegura a defesa do interesse público nesta área”, afirmou.

Fernando Araújo alertou também que as verbas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) são muito limitadas, ao contrário do que possa parecer, e por isso têm de ser bem aplicadas. “A requalificação dos hospitais da área central de Lisboa é necessária, mas tem de ser feita de forma ousada, muito voltada para o futuro ou acabamos por enterrar esta oportunidade”, sustentou.

Outra ideia defendida pelos oradores é a de que o país está numa profunda transformação: a trajetória demográfica está a modificar os territórios e os sistemas de saúde e de proteção social têm de ser pensados e adequados a esta realidade.

A este propósito, Manuel de Lemos falou da mudança de perfil demográfico dos utentes do SNS. “Hoje, em Portugal, para cada 100 crianças há 182 idosos e esta circunstância muda tudo. A reforma do SNS tem de ser pensada, senão estaremos a pensar numa realidade que não é a que existe. Somos a terceira população mais idosa da União Europeia”, afirmou o presidente da União das Misericórdias durante a apresentação do livro.

Fernando Araújo também se mostrou muito preocupado com “o caos instalado nos hospitais nos últimos meses, com um aumento crescente de idosos abandonados, sem retaguarda, com as famílias a não os querer receber e a Segurança Social sem dar resposta a este problema e, particularmente, às pessoas que sofrem com tudo isso”, lamentou.

Estes dados abrem caminho, no entendimento do presidente da União das Misericórdias Portuguesas, à inevitável cooperação entre os setores social, público e privado, “mas o Estado nada tem feito nesse sentido”, considerou.

Para Manuel de Lemos, “não há políticas de saúde que resistam se não houver articulação ao nível político entre os ministérios da Saúde e da Segurança Social. Os portugueses que não têm quem os acolha, seja num lar ou noutra resposta social, já perceberam que a solução é irem para a urgência de um hospital. Alguns têm famílias, mas não os querem, e o Estado, em nenhum caso, cessou o envio das reformas para as suas residências, em vez de as enviar para quem deles trata”, ressalvou.

O presidente da UMP apontou ainda a facilidade que o setor social tem para cooperar, pela sua proximidade e capilaridade no terreno, especialmente em territórios de baixa densidade. “Nestes últimos três anos, não passa uma semana sem que um administrador hospitalar não me ligue a pedir ajuda. O Estado já desertou dos territórios de baixa população. O setor privado não está muito vocacionado para aí e sobra para quem? Para o social. Em boa verdade temos know-how porque cuidamos dos idosos desde sempre e temos essa característica suplementar que é a nossa identidade e natureza”, afiançou.

A vertente da inovação e da tecnologia também mereceu uma reflexão profunda dos autores. Luís Portela elogiou a excelência dos investigadores nacionais, mas destacou que não temos conseguido levar à prática, com sucesso, novos produtos e novos serviços. O autor do prefácio sustentou que o Estado não tem conseguido atrair investimentos de multinacionais para Portugal e pouco tem apostado ao nível da renovação dos equipamentos e das estruturas hospitalares. “Parece-me necessária a definição de uma estratégia de desenvolvimento para a saúde que olhe para o investimento no sentido de, a nível da produção e da investigação, haver uma melhor prestação”. referiu.

Em jeito de conclusão, Manuel de Lemos citou João Paulo II para dizer: “Não tenhais medo. Não tenhais medo de pensar para ultrapassar o limiar da esperança em direção a um serviço de saúde em Portugal coeso e mais justo para todos”. A mesma citação foi aproveitada por Adalberto Campos Fernandes para sublinhar que “mesmo aqueles que não são crentes seguidores da fé católica devem lembrar-se que a pior coisa que se pode fazer é defender o seu reduto com medo. Pensar e discutir em prol do bem comum deve ser o propósito de cada um de nós, deixando o conservadorismo de lado nas questões essenciais”, exortou.

Os autores do livro da Editora d’Ideias são: Adalberto Campos Fernandes, Ana Paula Martins, Fernando Araújo, Filipa Fixe, Helena Pereira de Melo, José António Mendes Ribeiro, José Fernandes e Fernandes, Luís Filipe Pereira, Manuel de Lemos, Maria de Belém Roseira e Óscar Gaspar.

Voz das Misericórdias, Paulo Sérgio Gonçalves