Não escolhe idade, raça ou género. Afeta ricos e pobres. A demência, em Portugal e no mundo, está a aumentar. Estima-se que, em 2050, 22% da população sofra deste tipo de patologia. Ciente desta realidade, a Santa Casa da Misericórdia de Vagos lançou o projeto “Memorizar”. Financiada pelo POISE, a iniciativa é dirigida a pessoas com demência que residam no concelho de Vagos, seus cuidadores e comunidade em geral. Acompanhado pela equipa, o VM visitou duas famílias que estão a beneficiar deste projeto que já está no terreno há nove meses.
“Dão-nos força e alento. Pequenos nadas que, para nós, são muito importantes”. Quem afirma é Carmen Ferreira, de 52 anos, que há cerca de 12 meses cuida, a tempo inteiro, da mãe, Maria Rosa Oliveira, de 78 anos.
Os primeiros sinais da doença surgiram quando tinha 73 anos. Foi o marido o primeiro a aperceber-se de alguma desorientação e de outros sinais que suscitaram uma primeira avaliação neuro psicológica. O falecimento do cônjuge teve repercussão no agravamento da doença, o que levou Carmen Ferreira abdicar da profissão de educadora de infância, pedindo uma licença sem vencimento, para se dedicar “de corpo e alma” à mãe.
“Sou muito teimosa. Resolvi abdicar do meu trabalho para poder tratar da minha mãe. Ninguém a conhece como eu. Ninguém faz aquilo que eu faço. Eu sou mãe e filha galinha. Confesso que sou exigente”.
Mãe e filha estão a ser acompanhadas através do “Memorizar” quase desde o início e, volvidos nove meses, não poupam nos elogios. “É bom existir alguém que se lembra destas pessoas e também que existem cuidadores que precisam de ser cuidados. Tudo o que é feito com amor consegue-se. Não é fácil, é precisa muita abnegação. Quando tenho dúvidas contacto a equipa. Não me sinto só, mas há dias mais difíceis do que outros”, desabafa Carmen Ferreira.
De facto, a inexistência de resposta na área das demências no concelho de Vagos foi um dos fatores que esteve na base da candidatura ao POISE. Sónia Ribeiro, assistente social e coordenadora do projeto, conta-nos que os cuidadores estavam “ávidos de informação e de apoio emocional”. Com o “Memorizar” chegou a resposta “às necessidades que estavam a sentir”.
Para além da assistente social, faz parte do projeto uma equipa clínica composta por neurologista, psicólogo clínico, neuropsicóloga e terapeuta ocupacional. Cada pessoa é avaliada pela equipa, que após reunião conjunta, define a intervenção mais adequada.
Há casos que precisam de uma intervenção de todos, outros de um apoio mais específico, como Maria Augusta Vieira. Dotada, ainda, de alguma autonomia, desloca-se à Junta de Freguesia todas as sextas-feiras. “Vou na minha acelera” afirma com orgulho. Lá, encontra Luís Ramos, psicólogo clínico. “Encontrei uma pessoa com quem posso falar, desabafar, falar de coisas que não falava com outras pessoas. Fico mais aliviada, descontraída, sinto-me melhor. Eles são exigentes, mas tem de ser”, reconhece.
A exigência refere-se à estimulação cognitiva que ali recebe. “Converso, faço exercícios. Às vezes falho, nem sempre é perfeito, confundo as coisas, mas tenho melhorado”. Respira e conclui: “São uma grande ajuda para mim. Uma das coisas boas que me aconteceu”. A filha, Vitória Caramonete, concorda. “Se não fosse o projeto ela estaria muito pior”. A sexta-feira é, sem dúvida, um dia diferente. “Vem mais tranquila e descontraída”.
Estimulação cognitiva
“Alguns idosos passam dias inteiros sentados, à porta de casa, num banco de jardim, a ver passar os carros. Ou mesmo fechados dentro de casa. Podemos dizer que do ponto de vista social este pode até ser um comportamento epidémico”. A opinião é de Luciano Almendra, neurologista. Para este profissional de saúde, que abraçou com carinho o “Memorizar”, um dos fatores de sucesso do projeto prende-se com a proximidade. “Saímos dos cuidados de saúde estandardizados. É o médico que vai ao doente, e não o contrário”.
Apenas são apoiados doentes não institucionalizados. Porquê? A resposta é dada pela coordenadora. “Um dos objetivos do projeto é evitar a institucionalização. Quanto mais cansado está o cuidador, maior é a probabilidade de este querer integrar o idoso numa instituição porque, de facto, sente que já não consegue ajudar”. Assim, opinião unânime de toda a equipa, é fundamental olhar para o cuidador como elemento fulcral em todo o processo.
O neurologista não esconde que em patologias como estas, com carácter degenerativo, os indicadores são perversos porque haverá sempre deterioração. Como ajudar, perguntamos. “O primeiro passo é dotar os cuidadores do prognóstico da doença, para que não sejam criadas expectativas muito altas. Para os familiares que cuidam diariamente destes doentes, o peso assistencial é muito grande. São 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano. Por isso, é essencial dotar a família de algumas competências, tais como estratégias de estimulação cognitiva, desenvolvidas pela neuropsicóloga e terapeuta ocupacional.” Não menos importante, acrescenta, é “fazer uma intervenção terapêutica e cognitiva, de forma a prolongar e a estabilizar, o máximo possível, a função cognitiva do doente”.
Lar doce lar
Técnicos e beneficiários não têm dúvida de que a intervenção no domicílio é crucial, especialmente num concelho extenso, envelhecido e com uma rede de transportes deficitária. Conforme explica o psicólogo Luís Ramos, o apoio no domicílio foi pensado desde o início. “Na sua casa, no seu meio, com as pessoas que conhece, o idoso está mais confortável. Isto traz muitos benefícios porque trabalhamos com as necessidades reais do seu dia-a-dia. Esta proximidade com utentes e cuidadores permite corrigir alguns comportamentos”.
A equipa defende que esta nova abordagem pode replicada noutros concelhos “porque traz a possibilidade de manter os idosos em casa por um maior período de tempo, com mais qualidade de vida, numa situação muito mais confortável, sem terem de abandonar o lar e deixarem tudo aquilo que conheceram até à data”. A coordenadora vai mais além e admite que “este projeto é o futuro na medida em que alia a ação social à saúde”.
Estratégias de estimulação cognitiva
Anabela Silva, neuropsicóloga, e Dalila Figueiredo, terapeuta ocupacional, são as responsáveis pelo desenvolvimento de estratégias. A neuropsicóloga desenvolveu um programa que dota os cuidadores de estratégias cognitivas simples que permitem trabalhar diariamente. Pequenas fichas móveis, cedidas e renovadas semanalmente, que permitem perceber quais as principais dificuldades sentidas durante a semana: atenção, concentração, memória. Um programa individual e único para cada utente.
Por parte da terapia ocupacional, sente-se que os cuidadores por vezes não sabem como ajudar. Seja na linguagem ou na área motora, a intervenção ajuda a definir as prioridades e a melhor forma de atuar. “Por exemplo, como deslocar um acamado, ou simplesmente mudar uma fralda. Existem técnicas que aliviam, muito, o estado físico e emocional do cuidador”.
Voz das Misericórdias, Vera Campos