Por ocasião do Dia Internacional da Mulher, neste ano de 2023, convidamos à leitura e releitura dos vários textos que compõem a publicação 'Misericórdias no Feminino', organizada e editada pela União das Misericórdias Portuguesas em 2022.

Neste artigo, Vítor Melícias, presidente honorário da UMP, reflete sobre como "o lugar da mulher na história e na iconografia da Senhora do Manto é elemento precioso para se reconhecer que o “rosto masculino e feminino da humanidade” sempre existiu e foi reconhecido nas Misericórdia?s".

"Senhora do Manto: Manto de mãe, manto de misericórdia

Não sendo Deus nem deusa, Maria é na história da Salvação o toque de feminilidade maternal e rosto da divina misericórdia.

Na verdade, a Virgem Maria, Mãe de Deus e Mãe dos Homens, “bendita entre todas as mulheres”, ocupa lugar central e papel essencial da Salvação enquanto manifestação e presença maternal de um Deus, que, como Pai e Mãe, se torna redentoramente presente na humanidade e em toda a Criação.

Precisamente por isso, Maria introduz e representa, também na cultura e na história identitárias das Misericórdias, o rosto carinhoso e protetor da maternidade na relação religiosa do Homem com Deus e de fraternidade entre todos os seres enquanto Fratelli Tutti.

De facto, como literalmente reza o primeiro compromisso da Misericórdia de Lisboa, que serviu de modelo, quase intocado, para todas as Misericórdias criadas no mundo da lusofonia, “O Eterno Deus inspirou nos corações dalguns bons e fiéis cristãos e lhes deu coração, siso e força e caridade para ordenarem hua irmandade e confraria sob o título e nome e envocaçam de Nossa Senhora madre de Deos e virgem Maria da Misericórdia”.

Porventura, por destacada influência do seu amigo Cardeal de Alpedrinha, então vivendo em Itália, conhecedor e admirador da Misericórdia que desde o século XIII existia em Florença, e sob direto estímulo dos seus confessores franciscanos, que, a exemplo e exortação do fundador S. Francisco de Assis, eram de há muito os tradicionais pregadores da virtude e prática da misericórdia, a Rainha D. Leonor promoveu e patrocinou a fundação das Misericórdias com uma profunda marca da espiritualidade feminina e da mística franciscana, que a levou a fazer-se clarissa e como tal viver e ordenar ser sepultada no Mosteiro e Igreja da Madre de Deus, privilegiando sempre, nas suas estreitas relações e proteção aos franciscanos e às Misericórdias, a presença da Virgem Maria como Mãe e Protetora, Senhora da Misericórdia.

Na verdade, já Sto. António de Lisboa no seu famoso sermão da Festa da Purificação, n.º 9, se referia à Virgem Mãe de Deus como aquela que “recebe todos os que nela se refugiam e, por isso, se chama Mãe de Misericórdia”. Expressão que certamente não terá deixado de influenciar D. Leonor e as Misericórdias, as quais bem cedo adotaram nas suas bandeiras identitárias a imagem da Senhora do Manto enquadrada pelo lema “Sub tuum praesidium confugimus, Sancta Deigenitrix” (“Sob a tua proteção nos refugiamos, Santa Mãe de Deus”).

Aliás, nesse mesmo sermão da Purificação, Sto. António salienta que “A misericórdia é como a fêmea que guarda e protege os seus filhos”, seguindo o mesmo pensamento do seu amigo e fundador S. Francisco de Assis, o qual, segundo o seu biógrafo, Tomás de Celano (Vita II,198), ao sentir que ia partir deste mundo, “tenha constituído Maria Advogada da (sua) Ordem e posto sob as suas asas, para os proteger e sustentar até ao fim, os filhos que em breve ia deixar”.

Esta ideia e imagem, tão cara aos franciscanos, de Maria como mãe protetora, que, como as avezinhas, sob as próprias asas defendem e protegem os filhos, influenciou profundamente a memória coletiva e os temas de pregação e teologia dos frades menores, principais inspiradores das Misericórdias e da vocação assistencial das Ordens Terceiras por eles anteriormente criadas.

É certo que a representação da Senhora do Manto como mãe protetora tem remotas origens na iconografia das igrejas cristãs orientais, tal como é igualmente certo que, no seguimento da descrição deixada por Cesário Heisterbach da visão de um monge de Cister a reconhecer sob o manto de Maria todos os membros da sua Ordem, os cistercienses e, mais tarde, os carmelitas, mercedários e outras Ordens ou mesmo famílias e corporações tomaram a imagem da Virgem do Manto como protetora das respetivas instituições.

Não é, porém, menos certo que, a partir da pregação e das práticas franciscanas, como por exemplo a de S. Bernardino de Sena, dinâmico promotor de Ordens Terceiras, Montepios e outras instituições e confrarias de assistência e de misericórdia, como a confraria do Gonfalone (estandarte), que ele mesmo criou em Roma em 1270 sob o signo e imagem da Virgem do Manto, esta tenha vindo a ser rapidamente assumida como representação da mãe protetora da humanidade e de todos os necessitados.

De facto, a mística franciscana de fraternidade universal, que, na abordagem da nossa história, Jaime Cortesão tão sabiamente identificou como Mística dos Descobrimentos, ou seja, do grande Encontro de Povos e de Culturas, que os franciscanos proporcionaram e promoveram, inspirou a prática adotada pelas Misericórdias de que a Senhora do Manto passasse a ser uma Mater Omnium, mãe de todos, e não especificamente apenas de alguns setores, famílias, grupos ou instituições da sociedade e da Igreja.

Esta marca franciscana de universalismo humanitário e humanista de D. Leonor, plasmado nos brasões heráldicos do pelicano de seu marido D. João II e da esfera armilar de seu irmão D. Manuel, terá certamente contribuído para que, mantendo-se os inspiradores símbolos devocionais, prevalentes no interior das suas igrejas e textos religiosos, de Nossa Senhora da Piedade em cuja capela na Sé de Lisboa a Misericórdia fora fundada, e da Visitação de Maria a sua prima Santa Isabel, cuja festa litúrgica a 2 de julho fora desde logo assumida como modelo e dia das Misericórdias, se viesse também desde cedo a firmar como símbolo institucional e processional das Misericórdias a Senhora do Manto, protetora de todos os necessitados através das obras de misericórdia de papas, cardeais, bispos, frades e outros religiosos, representados debaixo de um dos lados do manto, e de reis, rainhas, nobres e povo debaixo do outro lado, em expressiva manifestação das obras de misericórdia como um direito e obrigação de omnium et erga omnes, isto é, de todos e para com todos.

Aliás, este ADN de universalismo fraternista das Misericórdias, que os portugueses espalharam por todo o mundo lusófono como “casas abertas ao mar,” é bem definido pelo dizer perspicaz de S. Francisco Xavier, na carta que em 28 de setembro de 1542 escreveu de Goa para Sto. Inácio de Loyola: “Haveis de saber que nesta terra e em todos os lugares de cristãos há uma companhia de homens muito honrados, que têm cargo de amparar toda a gente necessitada, assim aos naturais cristãos como aos que novamente se converterem. Esta companhia de homens portugueses se chama Misericórdia; é coisa de admiração ver o serviço que estes homens bons fazem a Deus Nosso Senhor em favorecer todos os necessitados.”

Este meu trabalho, que definiria como simples apontamento, não visa particularmente o caráter de universalidade da missão das Misericórdias, nem tem a pretensão de fazer história da arte ou explorar os valores pictóricos e iconográficos deste ícone maior dessas instituições, sobre os quais entre nós magistralmente se têm pronunciado Vítor Serrão, Joaquim Caetano, Isabel Guimarães e outros mestres da arte.

Contudo, no intuito de apoiar esta tão oportuna iniciativa de redescobrir e valorizar a centralidade e essencialidade da presença ativa e, não raro, inovadora e determinante da mulher na vida passada, presente e futura das Misericórdias, julgo de salientar que a mulher está presente não apenas na participação ativa e atuante, mas na própria iconografia institucional das Misericórdias, sobretudo as de padrão lusófono.

Na verdade, como disse, logo desde a sua fundação as Misericórdias adotaram como oragos e símbolos devocionais precisamente as festas e invocações da Senhora da Piedade e da Visitação, os dois maiores símbolos e rostos femininos da misericórdia de Deus.

Quase de imediato, porém, e porventura por influência da iconografia das Misericórdias italianas, o símbolo iconográfico de identificação institucional e heráldica das Misericórdias e da sua missão passou a ser o da Senhora do Manto, convivendo com a já adotada iconografia devocional da Piedade e da Visitação. Assim, a bandeira das Misericórdias passou a integrar, cada uma de seu lado, as duas vertentes estabelecidas no compromisso original da novel “irmandade e confraria”.

A Piedade e, principalmente, a Visitação, enquanto supremas expressões da virtude e espiritualidade da misericórdia, predominavam nos retábulos e altares das igrejas, bem como nas festas e atividades litúrgicas e penitenciais de confraria, ao passo que a representação institucional da Senhora do Manto ou das Misericórdias ganhava destaque sobretudo nos frontispícios das igrejas, hospitais e outros espaços ou atividades assistenciais e sociais da irmandade.

É assim que a Senhora do Manto, mais do que com o sentido de veneração religiosa através da imagem da Senhora da Piedade ou a da Visitação, se afirma sobretudo como símbolo institucional de proteção à obra e aos seus promotores a todos os níveis, como já acontecia no famosíssimo Políptico da Misericórdia, que Piero della Francesca pintara entre os anos de 1445 e 1472 por encomenda da Misericórdia de Sansepolcro, cidade onde hoje continua a ser visitado como uma das mais icónicas representações da Senhora do Manto e das mais emblemáticas afirmações da Misericórdia como instituição.

Na verdade, no maior e central dos 23 painéis que constituem o Políptico, a Senhora é representada de braços abertos em sinal de proteção aos figurantes acolhidos sob o seu largo manto azul.

Ora essas figuras, tendo nos pilares laterais dois brasões identificativos da Misericórdia são, com a máxima probabilidade, dirigentes e servidores da Misericórdia. A saber, do lado esquerdo, quatro homens com vestes e ar de pessoas destacadas, um dos quais é considerado o autorretrato do próprio pintor e outro um irmão da Misericórdia intencionalmente coberto com a tradicional “buffa” ou capuz negro usado pelos irmãos quando saíam em serviço para não serem reconhecidos nas suas pessoas, mas sim como enviados pela Misericórdia.

Do lado direito, quatro mulheres marcam a presença e participação feminina na prática das obras de misericórdia.

Tornou-se de certo modo comum que outras Madonna della Misericordia posteriores incluíssem mulheres, em representação ou de famílias, como, apenas por exemplo, a família Vespucci, na Madonna de Ghirlandaio, 1474, ou de instituições e ordens religiosas. Mas evoco aqui de modo particular a de Piero della Francesca, não só porque pintada expressamente para a Misericórdia e porque com muita probabilidade era conhecida pelo Cardeal de Alpedrinha e pelos portugueses de Florença e da Toscana, mas sobretudo porque é, talvez, a mais sugestiva como referência à presença e papel da mulher na vida e na obra das Misericórdias.

O lugar da mulher na história e na iconografia da Senhora do Manto é elemento precioso para se reconhecer que o “rosto masculino e feminino da humanidade” sempre existiu e foi reconhecido nas Misericórdias, independentemente das limitações impostas pela cultura e práticas sociais de cada época quanto à participação da mulher na vida pública e cívica, designadamente na estrutura e órgãos de direção das várias instituições.

Isso nunca impediu que, tal como D. Leonor e sua sobrinha, a Princesa D. Brites, que com ela também assinou o compromisso fundacional, tenham tido papel cimeiro na criação e real proteção às Misericórdias, das quais quase todas as rainhas com seus maridos se fizeram irmãs, seja na de Lisboa como em várias outras, nem tão-pouco estorvou a presença feminina, discreta mas intensa, tanto no apoio a maridos e filhos diretamente envolvidos em garantir e praticar as obras de misericórdia, como nos atos de culto por elas promovidos.

Aliás, apesar de durante séculos não terem assumido funções diretivas e de representação como irmãs ou provedoras, as mulheres, que foram amas de leite e encarregadas das rodas dos enjeitados, enfermeiras e dirigentes executivas nos hospitais, creches e infantários, mercearias, acolhimentos e asilos, bem como em quase todos os equipamentos e atividades diretamente assistenciais, são bem a marca do coração maternal e do sentimento de piedade das Misericórdias.

Na evocação da história do feminismo nas Misericórdias e da sua destacada presença iconográfica sob o manto protetor daquela “que a todos acolhe”, avulta o nome e figura de D. Simoa Godinho (1530-1594), “mulher de cor preta, mas muy rica, nobre e principal da Ilha de S. Tomé, com quem casara certo fidalgo portuguez (D. Luís de Almeida), e vindo para Lisboa, havia ficado viúva e sem sucessão”, a qual, além de erigir capela lateral para sepultura de seu marido e sua, na primitiva igreja da Misericórdia (parcialmente recuperada depois do terramoto como Igreja da Conceição Velha, em cujo frontispício se conserva o belo alto relevo original da Senhora da Misericórdia como Senhora do Manto), legou a sua enorme fortuna à Misericórdia de Lisboa e a obras pias aprovadas pela sua Mesa.

Muito longe de ser a única, D. Simoa é bem o exemplo maior do rol infindo de mulheres, que, em memória de gratidão, ocupam lugar de destaque nas galerias de retratos dos salões nobres das Santas Casas.

Em todas elas homenageando a excelsa presença da mulher na história e vida das Misericórdias, recordo apenas o exemplo historicamente paradigmático de D. Luzia Joaquina Bruce, emblemática benfeitora da Misericórdia do Porto, e aquela D. Maria portuguesa, emigrante minhota, que, ao saber do aflitivo apelo do então provedor da Misericórdia do Rio de Janeiro, por falta de recursos para atender os doentes, apareceu trazendo embrulhadas no seu tradicional lenço de cabeça minhoto todas as suas economias “para os pobres do hospital”, gesto que ainda hoje é louvavelmente assinalado com o seu retrato pintado a óleo na galeria dos benfeitores da Misericórdia fluminense. Honra e glória a todas elas, as de ontem, de hoje e de sempre.

A partir da portaria de 1872 do governo liberal de Fontes Pereira de Melo, estabelecendo a obrigação de admitir nas irmandades indivíduos de ambos os sexos, a situação estatutária e a participação de mulheres na vida das Misericórdias têm vindo a ser gradualmente alargadas e valorizadas, sendo hoje perfeitamente normal encontrá-las não apenas nas enfermarias hospitalares, creches, infantários e lares de idosos, mas, felizmente, cada vez mais nas funções de mesárias e provedoras.

Assim, por um lado, alarga-se o espaço e sentido maternal e protetor do Grande Manto de Mãe, Manto de Misericórdia, e, por outro, promove-se na casa comum da família humana a igual dignidade e competência da mulher, cidadã, esposa e mãe, que em boa hora já encontramos nas cátedras e tribunas das mais altas chefias. E, já agora, porque não ainda no altar e no púlpito?

À glória de Cristo. Em louvor da Senhora do Manto, Nossa Senhora da Misericórdia.

Ámen."

'Misericórdias no Feminino' integra uma coleção de seis obras sobre temas estruturais da ação e identidade das Misericórdias, publicada em 2022 com financiamento do Programa Operacional Inclusão Social e Emprego (operação POISE-03-4639-FSE-000849), que contam com a participação de personalidades das mais diversas áreas da sociedade.