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- Entrevista Vítor Melícias | ‘Bom serviço à globalização da solidariedade’
Como foi testemunhar a renovação do Pacto que subscreveu há 25 anos?
Começo por saudar com entusiasmo o Pacto, agora renovado e inovadoramente reforçado, após 25 anos de vigência. Foram 25 anos em que, infelizmente, nem sempre teve a visibilidade e seguimento que merecia. Mas ainda bem que agora aparece corajoso e adaptado às necessidades do presente e do futuro, mas mantendo a filosofia social e humanista que o inspiraram. Além da minha participação e da União, na elaboração e no lançamento desta primeira versão, permita-me que invoque a importante participação do Dr. Acácio Catarino, que Deus tenha e que bem merece a homenagem de todo o setor social, bem como dos então ministros Ferro Rodrigues e Maria de Belém Roseira, e já na fase de vigência e agora na criação do clima que levou a esta nova versão, o papel do Dr. Vieira da Silva, a quem o Pacto e a economia social tanto devem. Bem-haja a eles todos.
Qual é a importância estratégica deste documento?
Esta nova versão do Pacto é de enorme importância, pelo seu sentido e atualidade, baseado na inovadora filosofia da relação sintagmática entre o Estado e as instituições da sociedade civil, e pela confirmação da vocação de universalismo humanista decorrente da sua explícita fundamentação nos princípios da prioridade a toda a pessoa humana e da proximidade globalizante. Esta relação de responsabilidade conjunta em cooperação, aqui partilhada neste instrumento normativo jurídico, com uma sumidade vinculativa e uma natureza que a impõe às próprias leis ordinárias, confere-lhe uma extraordinária importância prática e valoriza esta filosofia que o inspirou. É de facto notável que o humanismo universalista assuma tal relevância nestes tempos de globalização, a qual não pode continuar a ser prevalente e desastradamente financeira e comercial (oxalá também fosse, pelo menos, política), mas precisa de ser verdadeira e efetivamente a globalização ou mundialização da solidariedade, da fraternidade universal, como lhe chama o Papa Francisco, na sua fratelli tutti. Ou seja, na já muito consagrada trilogia da Declaração Universal dos Direitos Humanos, liberdade, igualdade e fraternidade, esta fraternidade deve ter pelo menos tanto reconhecimento e tutela jurídico-política como a liberdade e a igualdade, numa ótica e objetivo de glocalização, da correta e equilibrada harmonização entre o “pensar global” e “agir local”. Só glocalizada é que a globalização pode ser humanizadora e promotora de direitos humanos, que por natureza são universais e “omnium et erga onnes”, de todos para com todos.
Em que medida o movimento das Misericórdias inspirou o Pacto?
Da filosofia do Pacto, assume-se por um lado a tradição universalista de Portugal no mundo, através das Misericórdias, que desde o início desse grande encontro de povos e culturas que foi os Descobrimentos, os navegadores e missionários de 1500 implantaram, desde Ceuta ao Brasil, de Goa a Malaca, Macau, Filipinas e até ao Japão, como já em tempos posteriores, bem como na Madeira e Açores, São Tomé e Cabo Verde, Angola, Moçambique e, mais recentemente, em Paris, Luxemburgo, Timor e até Brasília, onde participei como cofundador. Criando Santas Casas “abertas ao mar”, por onde quer que Portugal andasse, como base ou proteção a todos, cristãos ou não cristãos, portugueses ou naturais dos espaços desse mundo lusíado e lusófono, a raiz do seu sentido e identidade continua a traduzir-se na filosofia deste Pacto. E assim, é um desafio à procura de um modelo de cidadania solidária das Misericórdias, particularmente na Europa, que cultural e humanisticamente integramos, e nas terras de herança lusófona, que partilhamos. Esta versão atualizada será de bom serviço à globalização da solidariedade e, porque não, à expansão do modelo solidário de Misericórdias, na promoção da sua socialidade mais participativa nas políticas de economia social, que sintagmaticamente entre elas competem tanto como aos Estados e seus governos ou autarquias.
Que mudanças destaca nestes 25 anos, em termos de cooperação e relação com o Estado?
Não obstante o notável progresso e ação social ao abrigo e por impulso do Pacto de 1996, em boa hora se caminhou no sentido de celebrar os seus 25 anos de vigência com esta revisão, que, englobando os progressos já verificados, veio não só reforçar o âmbito e qualidade da ação, mas aprimorar o sentido e prática da responsabilidade conjunta, sintagmática, não meramente sinalagmática, isto é, de mútua contrapartida de direitos e obrigações. É por isso que os acordos são sintagmáticos e os contratos são sinalagmáticos. Uns e outros podem ser feitos entre o Estado e as instituições, sendo os acordos de responsabilidade conjunta.
Como se pode concretizar este novo modelo de relação com o Estado?
Há muita gente, incluindo provedores e outros dirigentes (e até juízes em julgamentos e sentenças), que pensam que as instituições apenas se limitam a vender a sua ação ao Estado no cumprimento da obrigação constitucional que lhe compete prestar a todos os cidadãos. Não. A obrigação é de todos. E os direitos de proteção financeira ou outra são do cidadão, das pessoas. Sendo que a obrigação do setor público, que por via fiscal arrecada em exclusivo as receitas, é a de suportar os custos e igualmente pertence às instituições, que não ao Estado, prestar os serviços. Esta responsabilidade sintagmática ou conjunta é exercida por cada um através de várias formas de compromisso, de cooperação, entre eles pactuados. É com este espírito que o Pacto deve ser lido, interpretado e julgado porque desde o seu nascimento foi concebido e exemplarmente assumido por todos os seus intervenientes. Pelas razões de especificidade histórica e de contexto que há muito venho invocando no universo das instituições de economia social e das instituições de solidariedade continuo a pensar que, à semelhança do que já acontece com as cooperativas e mutualidades, se justifica a existência de um Código das Misericórdias, que proteja e promova o princípio da proximidade e da solidariedade de vizinhança, particularmente nas áreas da saúde, como os cuidados continuados e similares, e do desenvolvimento local integrativo, com direta participação das comunidades locais. É, por isso, essencial que o Pacto e esta filosofia sejam divulgados em reuniões e congressos. Mas não é menos essencial que esta filosofia que lhe está subjacente seja aquela que serve a interpretação e aplicação de tudo o que a ele se refere. Que bela ideia se, por exemplo, já nas próximas reuniões e congressos da União e da Confederação Internacional das Misericórdias este tema tivesse lugar central, até para efeito de demonstração e alargamento do seu espírito.
De que forma as Misericórdias podem contribuir para reforçar o Pacto?
Além do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social e da Lei de Bases da Economia Social, pelas quais se regem as Misericórdias, e nas quais elas têm tratamento próprio e específico, este pacto constitui a norma básica pela qual aquelas normas devem ser interpretadas tendo em atenção o princípio da natureza e autonomia, que o artigo 5º da lei de bases define como independência perante o Estado e quaisquer outras entidades. Isto, claro, sem eliminar aquele “legítimo direito de tutela”, que o Estado mantém em defesa dos valores constitucionais e direitos dos cidadãos, mas contrariando os excessos, por vezes quase ridículos, de exigências por parte das autoridades, de licenciamento e fiscalização. Aliás, os processos já em curso da própria descentralização e transferência de competências do Estado para as autarquias são expressamente assumidos como “pressuposto do pacto de cooperação para a solidariedade”. Toda esta filosofia me leva a alegrar muito e a desejar que as Misericórdias liderem este movimento em defesa do pacto e das novas filosofias de solidariedade social globalizada, pelo que agradecendo a oportunidade desta entrevista desejo a todos as maiores felicidades.
Quais são as suas expetativas para o futuro da cooperação?
Que isto que acabámos de ler e refletir não caia em saco roto. Certamente que a evolução da sociedade, com as suas crises, poderá exigir mais empenhamento do que qualquer uma das partes. O futuro a Deus pertence, mas o homem tem uma responsabilidade na sua construção.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas
Créditos foto: Arquivo VM