Dez Misericórdias, dos distritos de Aveiro e Porto, receberam 36 estudantes de medicina, da Universidade de Aveiro (UA), no âmbito de um protocolo assinado em março deste ano, entre a União das Misericórdias Portuguesas (UMP) e a UA. A experiência decorreu em lares de idosos e unidades de cuidados continuados e visou um primeiro contacto com as instituições do setor social e a compreensão do seu papel na prestação de cuidados de saúde em Portugal.

Segundo Maria Amélia Ferreira, vogal do Secretariado Nacional da UMP na área da saúde, esta “intervenção é inovadora e abre muitos caminhos na colaboração com outras universidades e ao nível da interface dos futuros profissionais com as comunidades, criando uma cultura de proximidade, que até então não existia nesta área”. Ao permitir o contacto dos futuros médicos com “pessoas reais, a União das Misericórdias presta um serviço significativo ao exercício clínico dos próximos anos, promovendo uma formação integral, não só científica, mas também humanística, assim como uma visão mais centrada na comunidade”.

De acordo com o diretor do mestrado integrado em medicina da UA, Firmino Machado, esta parceria partiu do reconhecimento da “elevada qualidade dos cuidados prestados pelas Santas Casas aos seus utentes” e permitiu compreender o seu “papel fundamental na prestação de cuidados de prevenção, promoção da saúde, curativos e de reabilitação, em alta proximidade”.

A maioria dos estudantes considerou “transformadora” esta imersão no contexto real das instituições, reforçando a “importância do projeto na construção de um profissional de saúde completo” e na compreensão “do ambiente social na saúde do indivíduo”, revelou Célia Azevedo, docente da unidade curricular ‘Ciências Sociais, Humanidades, Artes e Investigação’.

A Misericórdia de Ílhavo recebeu seis estudantes na unidade de cuidados continuados e, de acordo com o enfermeiro diretor Leandro Oliveira, a “experiência correu de forma exemplar, permitindo compreender o setor e este nível de cuidados, quem são os profissionais e como é a cultura organizacional, para que nunca se esqueçam da pessoa por trás da doença”.

Para o jovem João Bispo, o estágio no lar de idosos da Santa Casa de Vale de Cambra foi útil para “conhecer o contexto das pessoas porque, ao longo da carreira, vamos contactar com pessoas institucionalizadas, que necessitam de um acompanhamento mais permanente”.

A estudante Carlota Martins, que acompanhou as rotinas do lar da Misericórdia de Águeda, valorizou a oportunidade de “contactar, logo no primeiro ano do curso, com instituições onde se prestam cuidados personalizados e de forma continuada, e onde pode observar, noutro contexto, a importância da escuta ativa, empatia e interação com os doentes”.

Na unidade de cuidados continuados António Breda (Águeda), a colega Lesly Guedes constatou que “a medicina não é linear e suas complexidades se intensificam em contextos onde a colaboração e uma visão integral dos casos são indispensáveis”. O pilar deste cuidado é o “trabalho em equipa”: “fisioterapia e terapia ocupacional recuperam mobilidade e autonomia; equipa médica e de enfermagem gere doenças crónicas; psicólogo e serviço social apoiam o bem-estar; nutrição e estimulação garantem reabilitação eficaz e melhor qualidade de vida”.

Outra das mais-valias destacada pela UA e Misericórdias foi a desconstrução de preconceitos associados aos cuidados prestados nestas instituições. “Desde logo, desmitificar crenças como serem decadentes, fechadas, pouco modernas e sem grandes estímulos”, adiantou a coordenadora de serviços de saúde da Santa Casa de Ovar, Catarina Pinto. Pelo contrário, quiseram mostrar que “um lar é muito mais do que uma instituição de fim de vida, visando um envelhecimento saudável e o acesso a bons cuidados sociais e de saúde”.

Concluído este primeiro acolhimento, o provedor da Misericórdia de Vale de Cambra, António Pina Marques, “deu nota do testemunho muito positivo dos estudantes e da satisfação em relação ao projeto, que poderá abrir outras portas no futuro”.

Nesta colaboração, um dos caminhos é a oportunidade de desenvolver investigações conjuntas, com a mentoria de docentes da UA, estando prevista, segundo Firmino Machado, a “translação de conhecimento da universidade para as Santas Casas”.

Depois do distrito de Aveiro, a experiência poderá abrir caminho à colaboração com outras universidades. Ao VM, a vogal do Secretariado Nacional da UMP, Maria Amélia Ferreira, que também é provedora da Santa Casa da Misericórdia do Marco de Canaveses, adiantou ter recebido um “pedido da Universidade da Beira Interior para implementar a iniciativa no próximo ano letivo”, registando ainda o interesse do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas em alargar a outras universidades.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas

 

‘Vimos uma úlcera de pressão e nunca nos tinha acontecido’

Francisca Gouveia, Maria Martins e Beatriz Pereira chegaram a Aveiro vindas da Madeira, Ponte de Lima e Porto, respetivamente. Em comum têm o curso de medicina da Universidade de Aveiro (UA). Mais recentemente partilharam, também, o estágio na Misericórdia de Ovar, no âmbito de um protocolo entre UA e União das Misericórdias Portuguesas (UMP). “Uma experiência muito enriquecedora”, afirmam.

Francisca Gouveia veio da Madeira para Aveiro estudar medicina. “Não me conseguia ver a fazer outra coisa. É uma paixão", confidenciou ao VM. Sobre a experiência na Misericórdia de Ovar, revela que tem sido proveitosa por permitir “interagir com uma geração muito diferente da minha e conviver com doenças como as demências". Nos centros de saúde por onde tem também estagiado, o contacto com idosos tem sucedido, embora estejam, de uma forma geral, “mais autónomos e apresentem outro tipo de doenças", explica Francisca Gouveia.

Maria Martins, natural de Ponte de Lima, realça que “a experiência tem sido muito enriquecedora e de grande aprendizagem". A autonomia é a grande diferença entre os contextos hospitalar e do lar. "Aqui [no lar] nota-se que estão mais vulneráveis e com maiores dificuldades em se expressarem, embora também haja muitos utentes ainda independentes". A futura médica nunca tinha pensado em trabalhar num lar de idosos porque desconhecia, na prática, “esta interdisciplinaridade e comunicação entre médicos, enfermeiros, cuidadores e restante estrutura".

Beatriz Pereira veio da cidade do Porto para Aveiro com a ambição de ser médica. Na bagagem trazia uma paixão especial pela pediatria. “Esta vivência, mesmo que curta, permitiu ver que há outros cuidados além do centro de saúde”. A jovem estudante de medicina reconhece que a geriatria não é uma área muito falada entre os jovens. “Muitos não têm a noção de que esta é uma área tão abrangente e que requer estes cuidados todos”. A simpatia e o acolhimento dos utentes “atingiram-nos de forma aconchegante”, conta.

Fundamental é, logo no primeiro ano, estes alunos começarem a lidar com casos mais delicados como aconteceu neste contexto. "Nós vimos uma úlcera de pressão e nunca nos tinha acontecido. Ver estes casos clínicos mesmo à nossa frente, como se lida com isto, é muito bom. O contacto direto vai tornar-nos melhores médicos e melhores pessoas", afiança Beatriz Pereira.

A relação que se estabelece entre os profissionais de saúde e os utentes, neste ambiente, “torna-se mais emocional e cria-se uma maior proximidade”, sublinha Beatriz Pereira. “O curso em Aveiro está desenvolvido para isso, mostrando que é possível formar médicos com muito conhecimento e empatia. Estes contactos diretos reforçam tudo isso. Sempre ouvi dizer que quem vai para medicina deve, em primeiro lugar, gostar de pessoas, de cuidar, e depois da profissão”.

O acolhimento e a relação estabelecida, mesmo que num curto espaço de tempo, foi muito positiva, assegura Sara Montezinho, uma das médicas da Santa Casa e tutora das estagiárias. “Mais importante que perceberem as patologias que os doentes têm e que medicação fazem, é terem a noção da importância desta interação com os doentes, médicos, enfermeiros e auxiliares”, considera, acrescentando que “o facto de terem encontrado também uma equipa jovem, na Misericórdia, poderá motivar estes ‘A União das Misericórdias presta um serviço significativo ao exercício clínico dos próximos anos, promovendo uma formação integral, não só científica, mas também humanística, assim como uma visão mais centrada na comunidade’ Maria Amélia Ferreira Vogal do Secretariado Nacional da UMP ‘A imersão prática revelouse crucial para desmistificar preconceitos e construir uma visão mais realista e abrangente do papel fundamental do terceiro setor no sistema de saúde’ Firmino Machado Diretor do mestrado integrado em medicina da Universidade de Aveiro ‘A primeira edição desta experiência de estágio foi, para a maioria dos estudantes, claramente positiva e transformadora. Houve mesmo quem a considerasse a experiência mais enriquecedora do primeiro ano da sua formação’ Célia Azevedo Soares Coordenadora da unidade curricular ‘Ciências Sociais, Humanidades, Arte e Investigação’ ‘A medicina não é linear e suas complexidades intensificam-se em contextos onde a colaboração e uma visão integral dos casos são indispensáveis’ Lesly Guedes Estudante de medicina na Universidade de Aveiro Frases futuros médicos a trabalharem em estruturas deste género”.

Beatriz Pereira concorda dizendo que, efetivamente, existe a ideia na sociedade de que quem vai para os lares são profissionais de saúde já em fim de carreira. “Este estágio serviu para mostrar que a realidade não é essa, abre- -nos outros horizontes e acabamos por passar a palavra a outros colegas”, frisa.

Eduardo Pereira, administrador da Misericórdia de Ovar, reconhece a importância deste acolhimento, tendo em conta que Portugal “é um país envelhecido e em que há uma necessidade cada vez maior de um suporte na área da saúde para a prestação de cuidados adequados às pessoas nesta fase da vida. É importante formar médicos com especialidade em geriatria", alerta.

Para o administrador, é importante que as universidades comecem a olhar para o tecido social, “a estreitar esta ligação e a desenvolverem trabalho de dentro para fora, isto é, investigadores e profissionais desta área estarem dentro dos lares, dentro das respostas sociais de idosos, que produzam competências para depois poder formar melhor as pessoas que prestam esses cuidados. No âmbito da especialização, a geriatria tem que ser uma prioridade", defende.

Apesar de estarmos a falar de um estágio de curta duração (24 horas), podem abrir-se as portas para que as pessoas se interessem e entusiasmem com o trabalho que é feito. “Os lares proporcionam uma grande ligação emocional, completamente diferente da natureza de um hospital. Aqui as pessoas residem, permanecem e há toda uma relação de afetividade, de continuidade, de acompanhamento, de ligação à família e de confiança que se estabelece”, lembra Eduardo Pereira.

Voz das Misericórdias, Vera Campos