O encerramento do ciclo de conferências, dedicado à apresentação de seis livros sobre temas centrais da sociedade portuguesa, esteve centrado na obra ‘Memória Covid-19’. O coordenador da edição, José da Silva Peneda, presidente da Mesa da Assembleia Geral da UMP, traçou o retrato do que foi o trabalho dos milhares de profissionais e voluntários que se dedicaram ao combate à pandemia, deixando uma palavra de apreço a todas as Misericórdias: “Nos últimos dois anos as Santas Casas não podiam deixar de se sentir mobilizadas para uma luta tenaz e difícil contra o vírus. E apesar de muitas dificuldades, angústias e apreensões, elas foram capazes de proteger os seus utentes”.
Silva Peneda teve como convidados dois antigos ministros da Saúde: Adalberto Campos Fernandes e Maria de Belém Roseira. Ambos fizeram questão de explicar o que se viveu durante a pandemia, deixando ideias, propostas de atuação e reflexões para o futuro.
Maria de Belém Roseira começou por afirmar que “a pandemia constituiu logo desde o início uma enorme lição de humildade. Nós pensávamos que, sendo países desenvolvidos, com os sistemas de proteção social que temos, que íamos ser capazes de conter o que vinha de países hipoteticamente menos preparados do que nós. Aquilo que se verificou é que faltou a capacidade de preparação para lidar com fenómenos desta natureza”. Uma opinião também partilhada por Adalberto Campos Fernandes. O professor universitário lembrou que “a lição que o vírus nos dá a todos é esta: eu apareço quando quero e faço aquilo que entendo. O vírus não quis saber da riqueza do país por onde estava a passar, não quis saber do PIB per capita, nem sequer quis saber se o país tinha ou não sistemas de saúde bem estruturados”.
As dificuldades de articulação entre alguns organismos públicos com áreas de decisão em Portugal e o papel determinante do setor social foram também debatidos durante o final de tarde de terça-feira, dia 4 de outubro, no auditório da sede da UMP. Todos foram unânimes na ideia de que “o que o vírus revelou foi que as Santas Casas souberam fazer bem esta combinação: para fora, com a prática da solidariedade entre a comunidade de vizinhos, para dentro, com a assunção desse bem maior que é a vida”.
Palavras de Silva Peneda que lançou assim o mote para a conversa, que teve nas declarações de Maria de Belém Roseira a sua confirmação: “Se as desigualdades marcaram na gravidade da incidência da Covid-19, elas entre nós não foram tão marcadas porque havia este suporte e esta rede junto das populações mais vulneráveis, uma vez que o isolamento, a idade, as comorbilidades eram todos fatores de prognóstico negativo. Isso conseguiu-se com um enorme esforço e dedicação. Não tenho dúvidas nenhumas”.
Mas Adalberto Campos Fernandes foi mais longe quando assumiu a ideia de que “os Estados não têm de ter nenhum tipo de problema, nem um complexo político-ideológico, de apoiar abertamente e ativamente o setor social. Não se trata de direita ou de esquerda. Trata-se de bom senso. Atualmente o Estado social não se realiza sem os cidadãos, sem a comparticipação acrescida dos cidadãos e sem intervenientes e atores que estão para além da esfera pública direta de intervenção”.
O antigo ministro da Saúde adiantou ainda que ninguém pode ficar descansado porque a pandemia terminou. Nas suas palavras, “a exposição do mundo a este tipo de vulnerabilidades é muito grande. E por isso temos de estar preparados, porque vamos ter outra pandemia, mais cedo do que estamos à espera. O vírus também mostrou que a Europa é um gigante de pés de barro. Não tinha autonomia estratégica, nem do ponto de vista científico e acima de tudo do que é a intendência. Nós não tínhamos produção de máscaras, não tínhamos equipamentos de proteção individual”.
Perante estas constatações, os dois convidados fizeram questão de referir ainda que a estratégia de abordagem em casos futuros não poderá ser a mesma que aconteceu nos últimos dois anos e meio. O Estado, concretamente nas áreas da saúde e do apoio social, tem de trabalhar em rede, para que as respostas sejam mais rápidas e eficazes. Por isso, Maria de Belém Roseira acrescentou: “Aquilo que para mim foi mais patente foi a incapacidade de trabalho conjunto. Como se as pessoas que estivesse em lares não fossem utentes com direito ao Serviço Nacional de Saúde. E ninguém falou nisso”.
Com o balanço concluído em relação ao modus operandi dos decisores políticos e agentes públicos durante a pandemia, a conferência terminou com ideias e algumas sugestões para o trabalho futuro.
O trabalho em conjunto é um imperativo. E reconhecer o que foi bem feito poderá significar melhores resultados quando o país for confrontado com novos fenómenos pandémicos, como este que aconteceu tão recentemente.
As palavras de Maria de Belém Roseira são significativas para o relato, em jeito de resumo, de tudo o que foi debatido. “Perante uma pandemia, esta é altura para todos pegarmos em armas e todos nos juntarmos. As pessoas não tentaram trabalhar articuladamente. Cada um esteve no passa culpas. A responsabilidade é deste e não é minha... Apesar disso, o setor da economia social fez aquilo que deveria ter feito, nos limites das suas forças”, concluiu a convidada da UMP que teve continuidade na mensagem que Adalberto Campos Fernandes deixou no final. “A minha mensagem é muito simples e é esta: desconcentrar, descentralizar e transferir para o nível local o poder que aproxima esse mesmo poder das pessoas. Se não fossem as câmaras, as juntas de freguesia, as Misericórdias, os voluntários, os profissionais de saúde tinham rebentado. Nós podemos em situação de crise trabalhar em conjunto, simplificando e não apresentando estruturas muito complexas”.
Silva Peneda fechou a conferência com uma súmula das ideias apresentadas. O moderador deste debate quis reforçar a ideia de que “na política é preciso saber o que fazer, mas acima de tudo como fazer. É nesta componente de como fazer que as Misericórdias deram o exemplo. Sabem como fazer. Julgo que o poder político deve recolher essa lição”.
A última conferência dedicada à apresentação dos livros publicados pela UMP sobre temas fulcrais na sociedade portuguesa foi presidida pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.