Temos de ter a humildade de não saber explicar nem o nosso tempo, nem o tempo do futuro. O tempo para a frente é um enigma, para trás pode ser uma lição.

José da Silva Peneda, presidente da Mesa da Assembleia-Geral da UMP

Vivemos um tempo único, que toca a todos e em todo o mundo. De repente, mudaram-se hábitos, atitudes, comportamentos e formas de pensar. Instalou-se a incerteza, a angústia, o medo e, para muitos, o pânico.

Agora percebo melhor Santo Agostinho quando disse que se ninguém lhe perguntasse o que era o tempo ele sabia, mas se alguém lhe fizesse a pergunta e ele quisesse explicar, deixava de o saber. Estou como Santo Agostinho. Sinto este tempo, mas não o sei explicar.

Porque dizem que não estávamos preparados e que estamos todos a aprender, este tempo ainda não é o tempo de saber e, muito menos o de explicar.

Como será o mundo depois deste tempo? Mudaremos de comportamento? Colocaremos o coletivo à frente do individualismo? O chamado neoliberalismo terá os dias contados? Apelaremos mais ao intervencionismo do Estado? As políticas sociais públicas serão mais reforçadas e irão privilegiar a proximidade? O teletrabalho vai ser fortemente incrementado? O ensino à distância passará a ser um pilar essencial dos sistemas educativos? O projeto da União Europeia caminhará no sentido de uma maior integração política e económica? Os populismos e os autoritarismos dos Estados irão proliferar? O consumo desenfreado, sentido como indicador de felicidade será atenuado? O combate à pobreza e às desigualdades será uma prioridade global? O ter e o parecer vão regredir em relação ao ser? 

Não é possível termos respostas para estas perguntas. Temos de ter a humildade de não saber explicar nem o nosso tempo, nem o tempo do futuro. O tempo para a frente é um enigma, para trás pode ser uma lição.

Sabemos que a prioridade é a saúde pública e há uma preocupação para tentar salvar, pelo menos uma parte da economia, especialmente no que respeita à menor perda possível de emprego e rendimentos. Em tudo o resto e neste tempo, há apenas opiniões, muitas delas pouco fundamentadas.

Consciente desta limitação resta a atitude de tentar retirar ensinamentos para o futuro. 

Da minha experiência vou referir três lições que têm a ver com o que se tem passado com as Misericórdias. A primeira lição diz-me que se torna necessário garantir uma mais eficaz coordenação entre as políticas públicas da saúde e do apoio social aos mais idosos, especialmente aos que vivem nos chamados lares.

As autoridades oficiais em Portugal vieram impor aos lares a vigilância e tratamento de doentes com infeção Covid-19, sem definir a cobertura necessária de médicos e enfermeiros e do fornecimento de equipamento de proteção individual, o que levou a situações dramáticas de doentes residentes em lar. Chama-se a isto “tirar a água do capote”.

A orientação das autoridades foi no sentido de fazer regressar aos lares os infetados e colocar os não infetados noutras instalações, o que é errado. Deveria ser o contrário, fazer regressar ao lar os não infetados e deslocar os infetados para unidades capacitadas para tratar da sua recuperação.

O setor da saúde não quis perceber que os lares são instituições de restrito âmbito social que, na sua larga maioria, não têm condições em termos de infraestruturas, de recursos técnicos e humanos, de espaços de isolamento e de equipamento para fornecerem acompanhamento em situações de doença aguda e de fácil contágio.

Há sinais que a situação está a ser alterada, mas o que se passou não pode ser repetido. A lição a retirar é que, para que a atuação seja mais coordenada entre saúde e apoio aos idosos, num próximo ajustamento da estrutura do governo, dever-se-á colocar debaixo da mesma tutela as duas áreas.   

A segunda lição tem a ver com o relacionamento entre as instituições sociais e as autarquias locais. Sendo que a larga maioria das Misericórdias e das IPSS exercem as suas atividades a nível local, o certo é que não está previsto qualquer tipo de relacionamento de natureza financeira entre as autarquias e essas instituições.

Tudo o que se vai fazendo são ações pontuais que dependem da boa vontade dos dirigentes das autarquias. Penso que seria muito vantajoso que a Lei viesse a prever que as Câmaras Municipais financiassem parte das despesas correntes das instituições sociais que exercem atividade nos respetivos municípios, com base numa percentagem a definir sobre a comparticipação outorgada pelo Orçamento de Estado a cada Câmara Municipal. 

A terceira lição resulta de uma constatação que resulta do extraordinário trabalho que está a ser levado a cabo pelas Santas Casas de Misericórdia na luta contra a Covid-19. Mais uma vez, dirigentes e trabalhadores, em circunstâncias muito adversas, nalguns casos verdadeiramente dramáticas, estiveram à altura da nobre missão que justifica a existência das Santas Casas, o bem comum. 

Transcrevo uma parte de uma reportagem publicada no jornal “Público”, em 27 de abril passado, sobre o que se viveu no Lar de Idosos Leonor Beleza, da Santa Casa da Misericórdia de Santo Tirso: “O lar fechou-se sobre si próprio, sem que do lado de lá da Linha SNS alguma voz se prontificasse a ajudar. O primeiro doente suspeito esteve sete dias à espera de ser testado. Sem os pequenos gestos heroicos dos funcionários do lar, sem a parte humana que os levou a dedicarem-se aos utentes, muitos mais teriam morrido. Num corpo de 67 funcionários com uma média de idades perto dos 60 anos, e entre os quais abundavam os motivos para se resguardarem em casa (por serem imunodepressivos, terem familiares doentes ou pais idosos, por exemplo), todos quiseram ajudar. “Aliás, entre os 28 que acabaram por ficar infetados, muitos queriam continuar aqui. Tivemos que lhes explicar que, em termos éticos, isso não era possível.”

Este é apenas um exemplo de muitas situações idênticas, que o País não conhece, vividas noutras Misericórdias. Como casos como este aconteceram em muitas outras Santas Casas fará todo o sentido registar, de forma fundamentada, o que foi para as Misericórdias a vivência com este vírus.

Essa história vai-nos contar aspetos quantitativos dessa luta que o País não conhece, mas também testemunhos, por parte de quem salvou vidas e viveu momentos dramáticos, que não podem ficar no arquivo do anonimato. Será uma história de reconhecimento público aos dirigentes e colaboradores das Santas Casas, que nos vai dar mais força numa caminhada que, para algumas Misericórdias, já dura há vários séculos. Com todo o gosto disponibilizei-me junto do Dr. Manuel de Lemos para coordenar um estudo que conte essa história ao País e às gerações futuras. 

Nestas semanas tenho acompanhado o trabalho do Secretariado Nacional da União das Misericórdias e não posso deixar de referir o elevado nível de conhecimento dos seus membros sobre o que se passa no terreno, a enorme competência, o bom senso, a diplomacia, a discrição e a firmeza de convicções, qualidades mobilizadas nos pleitos travados com diferentes entidades que têm sido resolvidos a contento das Misericórdias. Sou testemunha da preocupação em articular as ações com os Secretariados Regionais, peças essenciais para assegurar uma eficaz coordenação de atividades.

Ao Dr. Manuel de Lemos, que comandou o que nalguns momentos tem parecido ser mais uma operação militar, é devida uma palavra de reconhecimento, bem como a todos os membros dos Secretariados Nacional e Regionais.

Originalmente publicado na edição de abril de 2020 do Voz das Misericórdias