Na edição de junho do jornal “Voz das Misericórdias, Pedro Mota Soares, advogado, político e irmão da Misericórdia de Cascais, reflete sobre o papel das Misericórdias, desde o início da pandemia de Covid-19, enquanto “parceiro fundamental” do Estado na proteção dos mais frágeis e das pessoas que se veem agora “numa situação nova de fragilidade e pobreza”.

Uma imagem poderosa acompanha-me desde o início destes tempos difíceis da pandemia.

A imagem de um homem sozinho na vazia Praça de São Pedro, sozinho e frágil, sozinho e humano e frágil porque é humano e está sozinho.

A imagem do Papa Francisco, mas acima de tudo o seu exemplo, as suas palavras e a sua lucidez têm sido o farol para estes tempos de tormenta, neste mundo que de repente se tornou um local desconhecido.

“Ninguém se salva sozinho” disse-nos o Santo Padre. Mas também nos disse que: “A globalização da indiferença vai continuar a ameaçar e a tentar o nosso caminho. Queira Deus que nos encontre com os anticorpos necessários da justiça, da caridade e da solidariedade”.

Ao “caminho da indiferença” temos de contrapor o caminho da humanidade, da “justiça, caridade e da solidariedade”, em suma o caminho da misericórdia.

O Estado, especialmente ao nível da Administração Central, tem de perceber que não deve (nem pode) fazer o caminho sozinho. O modelo social europeu, de que tanto nos orgulhamos e que tanto sentido faz em tempos como estes, não foi criado à imagem solitária do Estado. Não é apenas do Estado e muito menos apenas e só do Estado ao nível central. O modelo social europeu é uma construção de parceria, de diálogo e concertação social, de chamada à participação na tomada de decisão, mas também na execução das medidas.

Vamos viver tempos difíceis e desafiantes. As autoridades europeias e as autoridades nacionais têm que estar dispostas a ir até onde nunca foram, porque na verdade nunca tivemos uma situação como esta numa economia com este grau de globalização.

Já conhecemos muitas das medidas que estão a ser tomadas - umas certas, outras insuficientes e outras ainda ausentes.

Precisamos de medidas para apoiar o emprego, para proteger as pessoas e ter uma economia com capacidade de produzir. Medidas para apoiar as empresas e instituições sociais que garantem emprego, criação de riqueza e a coesão social e territorial.  Medidas para reforçar a protecção social aos mais desfavorecidos, percebendo que há grupos específicos que vão ser atingidos de forma ainda mais dura: os desempregados (especialmente os que têm filhos a cargo); os mais idosos; os cidadãos com deficiência; os jovens que tinham uma legítima expectativa de viver em crescimento sustentável.

Tudo isto só será eficaz se assentar em projectos simples. Sem estruturas burocráticas, mas antes apoiado em quem sabe e quem já está no terreno, com recursos disponíveis para quem deles precisa.

Para que seja simples e eficaz é essencial que o Estado não o faça por si só, mas que utilize a rede nacional de solidariedade de que Portugal dispõe. Que reconheça a proximidade e a experiência das autarquias locais e que tenha a humildade de contratualizar com as instituições sociais que, em permanência, garantem já hoje uma resposta social.

Assumir que ninguém se salva sozinho deve levar-nos a convocar o melhor que o Estado social tem, as autarquias, as instituições sociais, os empregadores e sindicatos, as empresas, as organizações não-governamentais, os voluntários. É preciso contar com quem já está no terreno e é preciso incentivar quem, muitas vezes com sacrifício pessoal, dá o melhor de si para ajudar os outros. Tenho a firme convicção que mesmo todos juntos, todos vamos ser poucos.

As Misericórdias Portuguesas devem ser um parceiro fundamental neste caminho. Não só na resposta que já prestam através dos vários equipamentos sociais existentes do Norte a Sul de Portugal, mas também na protecção e promoção de direitos dos que são os mais excluídos dos excluídos da sociedade portuguesa, especialmente daqueles que podem ser colocados numa situação nova de fragilidade e pobreza e que precisam de uma resposta excepcional.

As Misericórdias já estão a ter um papel de “almofada social” para amortecer as dificuldades que muitas famílias estão a sentir.

Desde o início desta crise que as Misericórdias asseguraram respostas no sector social, na saúde e na educação muitas vezes sem a devida comparticipação ou reconhecimento por parte da Administração Central. Conhecemos algumas, mas não todas as histórias de enorme estoicismo em lares ou em equipamento de acolhimento de pessoas com deficiência. De profissionais que fizeram muito para além do seu dever ou obrigação. De dirigentes e voluntários que se tornaram em autênticos heróis ao serviço dos mais frágeis. De gente que se desviou do seu caminho, para fazer o caminho com outros. Mas também os casos dramáticos de muitas estruturas abandonadas à sua sorte pelos organismos responsáveis, que preferiram alijar as suas responsabilidades para outros.

O tempo agora é de construir esse caminho em conjunto. De acreditar na capacidade, capilaridade, competência e proximidade dessa enorme rede social de solidariedade, em que muitos dos laços mais fortes são Misericórdias.

Se aprendemos alguma coisa com as lições do passado, então temos de assegurar a coesão social que é, em si mesmo, um elemento fundamental para garantir que saímos mais rapidamente da crise económica e social que estamos a começar a viver. E o sector social foi vital para garantir essa coesão.

Uma última nota. Ainda estamos no início do caminho, mas já é devida uma palavra de profundo agradecimento a todos os profissionais, voluntários e dirigentes das Misericórdias de Portugal. A todos os membros dos Secretariados regionais e nacional que tanto têm dado de si. Ao Dr. Manuel de Lemos, que com o seu bom-senso, sensibilidade e profissionalismo tem sabido colocar as questões e trabalhado para encontrar soluções.

Leia a edição de junho do Voz das Misericórdias aqui.