Vítor Melícias é uma figura muito acarinhada no seio das Misericórdias e outras organizações da sociedade civil onde deixou a sua marca, nas últimas décadas, como a Santa Casa de Lisboa, União das Misericórdias, Liga dos Bombeiros, Montepio Geral e União das Mutualidades.

Depois de uma vida pelo mundo e de serviço aos outros, o sacerdote, frade franciscano e académico com obra publicada mantém-se um otimista determinado, fiel aos princípios de fraternidade, verdade e liberdade de pensamento. Ao longo deste percurso, foi condecorado com a Grã-Cruz de Cristo (2006) e a Grã-Cruz do Mérito (1993), entre outras distinções. Depois de uma vida pelo mundo, Vítor Melícias regressou à sua terra natal, onde reside desde os 78 anos no Convento do Varatojo com outros frades franciscanos, ocupando os dias com o estudo, orações e conferências pontuais. Vítor José Melícias Lopes nasceu a 25 de julho de 1938, numa aldeia do concelho de Torres Vedras (Ameal), no seio de uma família pobre e cristã, com nove filhos, onde nunca faltou “pão, alegria e solidariedade”.

Decidiu muito cedo que viria a ser padre, por influência do pároco da aldeia e do tio Fernando Félix Lopes, académico e franciscano que muito admirava. “Na escola primária comecei a dizer que queria ser padre, mas o meu pai não estava para aí virado”, mas acabou por aceitar a decisão.

Com o apoio de uma benemérita, prosseguiu estudos no convento de Montariol, em Braga, numa época “bonita marcada por tomadas de posição progressistas dos franciscanos e por uma consciência a favor da liberdade de pensamento”. Essa experiência proporcionou-lhe uma “formação virada para a abertura, fraternidade universal e ecologia, num tempo de política cultural restritiva”.

Concluídos os estudos, mudou-se para o Convento do Varatojo, em Torres Vedras, onde fez um ano de preparação espiritual e introdução à vida na congregação. E aos 18 anos, passou a residir no Seminário da Luz, em Lisboa, onde viveu até aos 78, com um intervalo de quatro anos, em Roma, para estudar Direito Canónico, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian.

O regresso ao país de origem ficou marcado por uma “viragem na mentalidade de algumas pessoas” e pelos movimentos de resistência, onde participou, na clandestinidade, com outros jovens. Nesse espírito, começou a “preparar, dentro da universidade, uma participação na sociedade civil”, cruzandose com Marcelo Rebelo de Sousa, Leonor Beleza e outras personalidades, colegas de curso [Direito na Universidade de Lisboa] e de outras faculdades.

Com algumas dessas figuras criou, em 1970, a Ad-Hoc - Análise e Promoção de Desenvolvimento Cultural, vetada pela PIDE no “momento de nascimento”, e fundou o Grupo da Luz, que “tratava de assuntos da fé, da política e fazia discreta oposição”, sem qualquer suspeita da polícia política. Reuniam na capela das Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria, em Lisboa, nomes como Marcelo Rebelo de Sousa, António Guterres, Diogo Lucena, Helena Roseta e Carlos Santos Freire.

Na mesma altura, Melícias envolveu-se na Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES) e testemunhou a criação de partidos políticos, como o PSD, PCP, PS, CDS e ASDI (Ação Social Democrata Independente), assumindo-se desde então um defensor convicto da “democracia, enquanto abertura a todos, sem se filiar em nenhum deles”. Mais uma vez, esta sua postura é um reflexo da “liberdade que os franciscanos pregavam em relação à filiação política, de cada um ter as suas opções, pelas razões que achar melhor, que acredito que sejam de justiça e de bem público”.

Também a sua presença interventiva nas causas públicas se inspira em São Francisco, no conselho que dá aos frades de “estar sempre disponível para o serviço de tudo o que for o bem, retirando-se discretamente, quando estiver em condições de caminhar sozinho”. 

Continua na próxima edição

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas

 

Diálogo de tolerância entre religiões

“Respeitar a verdade das outras religiões” (Bento XVI) e “criar obras em comum” (Papa Francisco) são algumas das recomendações que Vítor Melícias cita ao falar de diálogo entre religiões. Mantendo-se fiéis aos seus princípios, as religiões devem “juntar-se em unidade profunda para cooperar, não apenas num diálogo passivo, de tolerância e respeito mútuo, mas de cooperação pela paz, justiça e defesa dos pobres”.

Pensamento que reflete cultura humanística

Em Vítor Melícias, o espírito de abertura ao mundo e aos outros está também presente na diversidade de línguas que domina, além da materna. O presidente honorário da UMP é fluente em italiano, inglês, francês, espanhol e latim. No decorrer da nossa conversa, pontuam ainda dezenas de referências, citações e evocações, que refletem a sua vasta experiência e cultura humanística. Aos 86 anos, continua a publicar obras, como a edição sobre brasões das Misericórdias.