Os voluntários foram um alicerce vital para a Misericórdia de Alcanede no apoio prestado aos utentes de apoio domiciliário, centro de dia e famílias carenciadas, nos primeiros meses de pandemia. Com a reestruturação das equipas, em regime de espelho, e sem poder realocar funcionários de outras respostas sociais, esta Santa Casa do distrito de Santarém teve de encontrar uma “solução mais criativa” para colmatar a falta de recursos humanos e garantir o acompanhamento adequado a pessoas em situação de isolamento e vulnerabilidade social. Vicente, Prazeres, Paulo e Sílvia, Nelson e Carolina, Rodrigo, Luísa, Tatiana e Juliana, com idades entre os 18 e os 60, garantiram a entrega de refeições diárias, nos meses de abril, maio e junho, sendo em muitos casos a família que faltou em momentos de solidão e desânimo.
“Temos um país envelhecido, com muita falta de apoios e aqui temos a agravante de ter utentes sem ninguém por perto a quilómetros de distância. Esta é a maior freguesia do concelho e é tudo muito equidistante. As pessoas estão desgostosas pela falta de interação e redução do apoio prestado, estão muito carentes de atenção”, justificou Wanda Mendo, que assumiu o cargo de provedora em janeiro de 2019, com o objetivo de reestruturar serviços, motivar as equipas e melhorar a comunicação com a comunidade.
Dentro da carrinha que percorre a localidade para entrega de refeições, percebemos que as distâncias não se medem em quilómetros, mas pelas características (altitude, piso e sinuosidade) das estradas. Curva, contracurva, monte acima, serra abaixo, numa diversidade de paisagens e casarios, caiados, de pedra ou gastos pelo tempo. Noutro dia, sem tempo cronometrado, imaginamos um passeio para explorar a região.
Sem tempo a perder, os voluntários organizam-se em grupos de dois e ficam responsáveis por uma das três voltas definidas, num dos horários disponíveis (manhã, almoço e lanche). Alguns já colaboravam com a instituição, mas a maioria regressou à terra dos pais e avós, numa interrupção forçada dos estudos e trabalho presencial, que lhes permitiu dedicar umas horas do dia a levar alimento e alento aos idosos e famílias dispersas pelas aldeias da freguesia.
São pessoas que moram sozinhas, viúvos ou divorciados, mas também casais idosos e mães com filhos em idade escolar. Aguardam ansiosas a reabertura dos centros de dia ou a chegada dos familiares, que vivem no estrangeiro, usufruindo somente da companhia da televisão, árvores de fruto, animais de estimação e voluntários que lhes trazem as refeições.
No dia da nossa visita, as voluntárias fazem o percurso número 3, que passa por Casais da Charneca, Aldeia de Além, Abrã, Casal Quintino, Colos, Vale do Carro, Aldeia da Ribeira, Vale de Água, Vale da Trave e Alqueidão do Mato. A buzina sinaliza a nossa chegada.
Bom dia, senhor Vítor! O utente de centro de dia mora sozinho, num antigo pavilhão desportivo no centro da vila e sente falta das rotinas suspensas. Tem saudades do centro de dia? “Então não tenho!”. Para ocupar os dias, faz voluntariado numa agência funerária e por isso está sempre a par das novidades de vivos e defuntos na freguesia.
Na próxima casa, os cães servem de campainha. Do outro lado da porta, espreita o rosto atento de Lucinda Barros, com um sorriso tímido, que se renova em confidências. “Quem trata do jardim é a minha filha. Ela não quer que eu viva sozinha. Pode tirar uma fotografia, mas veja lá se me põe mais bonita”, brinca enquanto no seu jardim dois gatos se espreguiçam e uma galinha corre fora da capoeira.
Podíamos ficar horas na soleira desta moradia térrea, mas temos outras pessoas à espera. De volta à estrada, o termómetro indica 37 graus. Ao volante, Luísa Martins explica como a sua vida se cruzou com a da Misericórdia de Alcanede, primeiro como ajudante de ação direta no serviço de apoio domiciliário, centro de dia e lar de idosos e, mais tarde, como voluntária.
“Por motivos de saúde, tive de me reformar por invalidez e regressei mais tarde à Santa Casa como voluntária. É uma coisa que me preenche muito, sinto-me muito realizada, dou todos os dias graças a Deus por poder continuar a ajudar os outros. Aqui tenho a minha paz de espírito”.
Em poucos minutos, percebemos que Luísa conhece os nomes e histórias de todos os que visitamos. Não podíamos ter melhor cicerone a guiar-nos pelas memórias e afetos das gentes da vila. “Os meus pais tinham terrenos aqui perto e as pessoas encontram-se todas na vila”.
A dupla de jovens na outra carrinha soube do projeto de voluntariado por intermédio de amigos e familiares e aproveitou o regresso forçado a Alcanede para ajudar os conterrâneos. Juliana Louro, estudante de Direito, e Tatiana Pereira, aluna de enfermagem, já somam dois meses de experiência e recomendam cautelas aos utentes que acompanham há mais tempo. “Já tomou os medicamentos hoje?”. “Não se esqueça de guardar os iogurtes no frigorifico”.
A meio da ronda dos almoços, encontramos o senhor Aníbal à sombra de um pessegueiro. A mesa está posta para um, na casa de família, que outrora ostentou horta e pomar abundantes. Aníbal aguarda a nossa chegada como um evento há muito esperado. O ponto alto do dia, que para seu deleite, se podia estender num convívio prolongado à sombra das árvores. Mas esse é outro projeto que aguarda financiamento, segundo nos confidenciam mais tarde a provedora e diretora técnica.
Enquanto a verba não chega e os centros de dia não reabrem, a escassez de meios físicos e humanos é colmatada com criatividade e engenho, e os afetos dos voluntários. “Acabamos por ser a família que lhes falta”, reconhecem na despedida. Até ao nosso (vosso) regresso.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas